São Paulo, terça-feira, 16 de janeiro de 1996
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Choro está de volta com Zé Nogueira

SÉRGIO AUGUSTO
DA SUCURSAL DO RIO

A atual revitalização do choro poderia ter sido um argumento convincente para nivelar o cachê de Paulinho da Viola aos dos seus companheiros no réveillon oficial do Rio. Mas não ocorreu a ninguém invocá-lo. Azeite, como se dizia no tempo em que os cariocas viravam o ano sem folguedo chapa branca. Paulinho não precisa da nossa comiseração, o choro está de volta, Zé Nogueira lançou seu primeiro disco -e é isto que importa para injetar um pouco de ânimo e esperança nestes primeiros dias de 1996.
Vira e mexe, o choro renasce. Primo da polca, da valsa e do maxixe, sua origem humilde (as bandas de escravos das fazendas fluminenses da metade do século passado) não o impediu de gerar uma linhagem nobre de instrumentistas, acima dos quais ainda reina, espiritualmente, o nunca assaz louvado Jacob do Bandolim. É a esta estirpe que Zé Nogueira pertence. Seu instrumento não é o bandolim, mas o sax soprano, irmão do oficlide, o quarto na hierarquia do choro primitivo, tradicionalmente dominado pelo trio violão-flauta-cavaquinho.
Ungido por quem entende do riscado (na primeira fila: Guinga, Edu Lobo, Djavan e Aldir Blanc), Zé Nogueira tem um sopro único, reconhecível à distância, sempre carregado de emoção e blueseira dolência. Quando alegre, ninguém contém sua serelepe melifluidade. Ele venera um Deus brasileiro, Moacir Santos, e não esconde o óbvio: entre seus mestres, Paulo Moura briga com Zé Bodega. Sem falar em dois inevitáveis gringos. Seu lirismo tem o timbre de Miles Davis e seu tom meditativo não esconde as marcas deixadas por John Coltrane.
Resumindo: Zé é uma espécie de Wayne Shorter do choro. Mas carioca da gema. "Leopoldinamente refinado e ipanemestiço", acrescenta Guinga.
O que dizer de um músico que esperou quase 20 anos para gravar seu primeiro disco? De livre e espontânea vontade, é bom esclarecer.
"Queria amadurecer um pouco mais", explica o modesto ex-comparsa de Djavan, ao lado de quem tocou durante oito anos.
Queria também conhecer a fundo o patrimônio do choro. Não deu para ele ouvir os lendários trinados do oficlidista Irineu Batina, mas nada do que Jacob do Bandolim -e sobretudo os saxofonistas K. Ximbinho e Severino Araújo- compuseram e gravaram escapou aos ouvidos do Zé.
Não foi, portanto, mera obra do acaso o fino repertório de "Disfarça e Chora", título emprestado à jóia de Cartola e Dalmo Castelli, que brilha na última faixa do disco.
Nele figuram, ainda, tesouros de Jacob ("Nostalgia"), K. Ximbinho ("Sonoroso"), Severino Araújo ("Chorinho pra Você"), Paulinho da Viola ("Sarau pra Radamés"), da dupla Edu Lobo-Chico Buarque ("Beatriz") e até um choro modernista de Guinga ("Futuramente"). Ao ídolo máximo, Moacir Santos, espaço privilegiado: "Amphibious" (ele e Zé já tocaram este choro maxixado no Free Jazz, mas quem desta vez completa a dupla de sopros é Leo Gandelman) e "Anon" (transformado num sarapatel sonoro zorrado pela escola de samba de mestre Marçal).
Disfarce e releve: o disco não tem apenas choros, mas também valsas ("Dracenas", especialmente composta pelo pianista e arranjador Cristóvão Bastos) e sambas ("Minhas Madrugadas", de Candeia e Paulinho da Viola).
Já deu para perceber que tampouco na escolha de acompanhantes Zé briga em serviço. Música de primeira, músicos de primeira. Além de Cristóvão Bastos ao piano (e nos arranjos), Marçal na percussão e Leo Gandelman no sax barítono, entraram na dança o pianista Leandro Braga (que também contribuiu com quatro arranjos e um tema, "Madrinha"), os violonistas Marco Pereira, Mauricio Carrilho e Pedro Amorim, o guitarrista Victor Biglione, a cavaquista Luciana Rabello, o clarinetista Paulo Sergio Santos e o baixista Bororó. Um timaço que mais requintado ainda ficou com o suporte dos sete violinos, das duas violas e dos dois cellos que compõem a Cia. das Cordas.
"Disfarça e Chora" é um disco que não apenas o choro precisava, mas também a cidade que o inspirou e o viu nascer. Um disco cujas canções, para usar as palavras de Edu Lobo, parecem fotografias do Rio de manhã, de tarde, de noite e de madrugada. De um Rio que já foi e merecia voltar.

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