São Paulo, quinta-feira, 18 de janeiro de 1996
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Trabalhos forçados

OTAVIO FRIAS FILHO

Sempre ouvimos dizer que o trabalho melhora as pessoas. Confere senso de responsabilidade, estabelece disciplina e espírito de cooperação, fixa objetivos, dá um sentido, enfim, à vida. O trabalho organiza uma quantidade imensa de energia que, de outra forma, seria dispersa a esmo, sem propósito nem utilidade. Todo progresso, todo bem-estar é fruto do trabalho.
Enquanto exaltamos, no entanto, as virtudes públicas do trabalho, fazemos questão de ignorar a mutilação devastadora que ele produz na vida subjetiva de cada um. Todo trabalho tende a se especializar, e a especialização equivale a uma morte em vida. Nossos horizontes se estreitam, nossa imaginação seca, junto com o que nos restou de curiosidade e de coragem.
Embora seja horrível, anti-social e até antipatriótico admiti-lo, o trabalho nos torna mesquinhos, repetitivos, gananciosos, amedrontados; maçantes no convívio social e mal-humorados no convívio familiar. Não existe uma só qualidade humana -incluídos o desprendimento, o espírito de aventura, a própria disposição de viver- que o trabalho não corrompa.
Daí a eterna fantasia de que possa existir um trabalho prazeroso, um meio-termo ideal, porque tampouco toleramos o ócio: é insuportável olhar de frente para a própria solidão. Depois de alguns dias de ócio somos tomados por um desespero sem causa, precisamos "fazer alguma coisa" antes de enlouquecer. É o caso do turista, imerso na sua agitação vazia, fugindo da própria sombra.
Marx subordinou os tormentos do trabalho à escassez. Liberadas as forças produtivas, mediante uma organização racional da economia, seria possível, de acordo com a célebre passagem, "caçar pela manhã, pescar à tarde, criar animais ao anoitecer, criticar após o jantar, segundo o meu desejo, sem jamais tornar-me caçador, pescador, pastor ou crítico".
Parece estranho alinhar a atividade do crítico, talvez a mais improdutiva que já se inventou, ao lado de afazeres tão úteis, mas era essa a intenção, mostrar que a própria distinção entre atividade produtiva e improdutiva não faria sentido na fase final do socialismo, onde o filósofo alemão situou, aliás, o seu fim da história.
Do nascimento à morte somos mantidos em instituições disciplinares, primeiro a escola, depois a empresa. Sem elas, a grande maioria das pessoas provavelmente cairia no crime, na droga e no álcool, no suicídio. Ainda mais do que o trabalho e o ócio, detestamos a liberdade para fazermos o que bem entendermos com a nossa vida; preferimos destruí-la de uma vez.
Uma parte do sonho marxista está em vias de se realizar: a produção depende cada vez menos do trabalho. Trabalho "criativo", trabalho em casa, trabalho terceirizado etc. são sintomas da crise do trabalho, da sua perda de valor, que explode sem ilusões no desemprego crônico e crescente. FHC falou recentemente em trabalho ocupacional. O tema se desloca da economia para a medicina penal.

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