São Paulo, sexta-feira, 19 de janeiro de 1996
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O Cade deve existir?

MAILSON DA NÓBREGA

A opinião pública foi surpreendida recentemente por um ato atrabiliário contra o grupo Gerdau. O presidente-interino do Cade (Conselho Administrativo da Defesa Econômica) tentou obter da Justiça a intervenção nas empresas do grupo e o afastamento de seus administradores.
Dificilmente o burocrata averiguou se a Justiça encontraria pessoas com capacidade gerencial para substituir os administradores, familiarizar-se rapidamente com a complexidade dos negócios do grupo, liderar milhares de especialistas e operários no Brasil e gerir suas atividades de comércio exterior em dezenas de países.
Sensatez e prudência nem sempre estão disponíveis nessas situações. Contou mais a valentia do burocrata, que posou de zeloso cumpridor das normas. Felizmente para a empresa, seus clientes, fornecedores e empregados, a coisa não teve curso. O presidente efetivo do Cade conseguiu suspender a tempo o desatino.
O episódio pôs novamente em discussão a necessidade ou não do Cade. Muitos defenderam a pura e simples extinção do órgão. Voltaram à baila os receios dos danos que burocratas podem infligir à economia e à sociedade via interpretações estapafúrdias da Lei Antitruste.
A lei, sancionada em junho de 1992, determina (artigo 54) que devem ser submetidos ao Cade os atos "que possam limitar ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência, ou resultar na dominação de mercados relevantes de bens e serviços".
Cabe ao Cade, para autorizar o ato, julgar se este propicia aumento da produtividade, melhoria da qualidade e desenvolvimento tecnológico. Deve verificar se a medida beneficia equitativamente participantes e consumidores e se não elimina a concorrência. Exigirá ainda que "sejam observados os limites estritamente necessários para atingir os objetivos visados" (sic).
O campo para a subjetividade é enorme. Depende do que o burocrata entender por concorrência. A empresa ficará, pois, à mercê de julgamentos pessoais e não raro de conhecidos preconceitos contra a iniciativa privada.
Durante mais de 30 anos, o Cade foi solenemente ignorado. Ressuscitou depois da nova lei e tem trabalhado mais do que em toda sua existência. É óbvio. Agora, se uma empresa adquirir mais de 20% do mercado, deve passar pelo seu crivo.
A inspiração do Cade é a Lei Sherman (1890) e outras que a ela se seguiram nos EUA. Ali, entretanto, as normas têm raízes na visão de liberdade política da sociedade civil. Nasceram da percepção de que o abuso do poder econômico deveria ser tão temido quanto o do poder político.
A aplicação severa da legislação americana coibiu conluios para dominação de mercados na onda de fusões e aquisições do final do século passado. Vários países a adotaram. Nem mesmo a ultraliberal Margareth Thatcher a dispensou.
Os monopólios e oligopólios são um caso clássico de falha de mercado. Poucos duvidam de que cabe ao Estado evitar que eles impeçam a concorrência, pois isso quebraria a lógica essencial do capitalismo.
O problema, dirão os liberais, é que o Estado pode também falhar nessa ação e produzir efeitos piores. Nos EUA, muitas decisões durante a Grande Depressão tornaram a concorrência mais imperfeita.
Com a globalização, cresceram os argumentos contra a legislação antitruste. Raramente se pode falar em dominação de mercados em economias abertas. Por exemplo, a Michelin tem cerca de 60% do mercado de pneus na França e nem por isso o governo está de olho na redução dessa fatia.
Nos EUA, o ímpeto antitruste reduziu-se muito, sobretudo depois da concorrência das empresas japonesas, cuja força derivava em grande parte da escala que haviam adquirido em sua pátria, onde estiveram a salvo de tão rigorosa legislação. A competição era vista, neste caso, em sua dimensão internacional.
A legislação americana serve mais agora para a enfadonha e interminável rotina dos tribunais. Como assinalou Robert Reich ("The Work of Nations", First Vintage Edition, 1994), a atitude antitruste, antes um movimento político, hoje é apenas uma especialidade jurídica.
Os americanos não estão pedindo que se derrogue a legislação, que ainda se justifica em certas situações. No Brasil, entretanto, a lei precisa ser modificada para reduzir o subjetivismo e a participação de burocratas cuja mente parou de evoluir há décadas. Do contrário, de mancada em mancada, a opinião pública vai apoiar a extinção do Cade.

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