São Paulo, domingo, 21 de janeiro de 1996
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Lavradores do Piauí vivem em cavernas

CRIS GUTKOSKI
DA AGÊNCIA FOLHA, EM PIMENTEIRAS (PI)

Os lavradores que vivem na fronteira entre o Piauí e o Ceará encontraram uma forma inusitada para fugir da insegurança de se viver sob o teto de uma palhoça. Foram buscar abrigo em cavernas.
Nesta região do Brasil, há dezenas de famílias de pequenos agricultores morando sob as rochas, em grutas e cavidades insalubres das Serras da Ibiapaba e Grande.
As cavernas que servem de habitação em Pimenteiras (256 km a sudeste de Teresina) têm variados formatos, a que os moradores se adaptam segundo as necessidades e o tamanho da família.
Em geral, as moradias encontradas prontas na natureza são bem maiores do que as erguidas com barro e palha pelos lavradores pobres na região. "Aqui dentro cabe rede que não acaba mais", orgulha-se José Pereira, 71, que mora na mesma caverna desde 1959 e criou 11 filhos sob um teto de pedra sem divisórias.
"A minha era uma casona, com dois quartos e uma varanda grande", conta Pedro Pereira da Silva, 55, referindo-se à caverna onde morava. Ele, a mulher e os 12 filhos dividiram uma caverna por 17 anos no Baixão da Torre, em Pimenteiras. Hoje, Silva é posseiro na fazenda São Caetano.
Os agricultores instalam-se de forma definitiva nas chamadas "ocas de pedra" porque a lavoura que cultivam fica no terreno acidentado da própria serra. Sem adubo, máquinas ou irrigação, a roça é quase tão rudimentar quanto a moradia.
Com o tempo, os moradores das cavernas acabam desistindo de construir uma casa melhor no local por dois motivos principais: não encontram palha de carnaúba suficiente para formar o teto do barraco e as telhas de barro são caras e difíceis de transportar pelo terreno íngreme da serra.
Francisco Lopes da Silva, 71, aponta uma outra razão que o fixou à vida na caverna por 14 anos, em Caldeirão de Areia (Pimenteiras): "Os donos da terra não queriam deixar a gente fazer casa (na área que cultivavam) com medo que a gente tomasse a terra deles".
A maioria dos lavradores ouvidos pela Agência Folha possui pequenos lotes de terra (10 a 20 hectares), mas há também os que cultivam a terra alheia.
Lopes da Silva conta que seus pais, tios e primos também habitaram os rochedos vários anos. A gruta onde morava tinha mais de dois metros de altura na entrada. "Não tinha porta, fazia um frio danado. A gente sempre adoecia", recorda. "Tudo perigava: barbeiro, cobra, piolho de mocó; era uma bicharada só dentro de casa".
O lavrador deixou a casa na pedra há vários anos e foi a Pimenteiras para que os seis filhos estudassem. Continuou trabalhando na agricultura e mora hoje numa casa de tijolos com piso de terra.
Nessas moradias nas rochas encontram-se redes, jiraus, banquinhos, mesas, caixas para roupas, potes de água e fornos de barro. Exibem ainda imagens de santos e calendários fixados nas pedras.
As refeições dos homens das cavernas do Piauí são à base de farinha de milho, mandioca e feijão, podendo ser enriquecidas com leite ou carne de tatu ou veado.
O ataque de cobras e insetos é um perigo diário para quem vive no meio das pedras.
Apesar de todos os riscos e da dificuldade para conseguir ajuda em situações imprevistas, não se conhece muitos acidentes fatais nesses locais. Os vizinhos de caverna João Becker, 65, e José Pereira, recordam-se de dois "colegas de porão" que foram picados por cobra e morreram.
O lance mais trágico e do qual várias pessoas em Pimenteiras se lembram foi a morte do lavrador Luiz Gualdino, há três anos. Ele estava com a mulher quando parte do teto caiu sobre seu corpo. Gualdino não morreu na hora e sua mulher ficou a tarde inteira gritando por socorro. Como estavam na serra a 18 km de distância do povoado mais próximo, ninguém ouviu.
"Deus não deixa a pedra cair", conforta-se Becker, explicando por que não tem medo de morar ali. "Essa casa foi feita por um ser superior", complementa Pereira. Ambos confiam na providência divina para anular os efeitos da erosão a que a serra está sujeita desde que o mar que existia ali foi sedimentando a rocha, há cerca de 435 milhões de anos.

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Sobre os moradores das cavernas à pág. 1-18

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