São Paulo, sexta-feira, 26 de janeiro de 1996
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Lei trabalhista é ficção no cinema nacional

ELVIS CESAR BONASSA
DA REPORTAGEM LOCAL

As produções cinematográficas no Brasil, do ponto de vista dos direitos do trabalho, vivem em uma terra sem lei. Em fase de ressurgimento, com maior volume de filmes por ano após o deserto da Era Collor, o cinema brasileiro se sustenta sobre a informalidade das relações, contratos de trabalho ilegais e falta de fiscalização.
A contratação de técnicos para o cinema (diretor de fotografia, eletricista, continuísta, cenógrafo etc.) possui legislação específica: para mais de uma semana de trabalho, é obrigatório o registro em carteira, com o pagamento de todos os encargos sociais (FGTS, férias, 13º salário, previdência).
É preciso ainda que o profissional tenha registro na Delegacia Regional do Trabalho e todos os contratos devem ser registrados no sindicato da categoria, assim que assinados. Como as demais categorias, esses profissionais não poderiam trabalhar mais de oito horas por dia.
As regras estão na lei 6.533, de 1978, mas não são obedecidas no mundo real. Embora lancem todos os gastos decorrentes dessa lei nos seus orçamentos, para obter patrocínio ou subvenções públicas, os produtores fogem desses encargos e usam o dinheiro previsto para cobrir outros custos da filmagem.
"Nós não cumprimos a legislação porque é impossível. Quando estávamos filmando, veio uma fiscal do trabalho e começou a falar tudo o que deveria ser feito. Eu disse que seria inviável e até ela concordou", diz Bianca de Fellipes, produtora de "Carlota Joaquina", dirigido por Carla Camurati.
"Carlota Joaquina" custou R$ 500 mil. Se fosse cumprir a lei, avalia Bianca, o custo poderia chegar próximo a R$ 1 milhão. O que significa, na prática, que não seria filmado. A inviabilização do projeto provocada pelo impacto dos custos de contratação é também o argumento apresentado por Flávio Tambellini, produtor de "Terra Estrangeira" (direção de Walter Salles), para ficar à margem da legislação.
"Se for feito tudo de acordo com a lei, a produção vai ser onerada em 50%", afirma Tambellini. Ele observa, no entanto, que muitas vezes os próprios técnicos preferem ser contratados sem carteira assinada, como prestadores de serviço.
Sonegação
Com o contrato de prestação de serviços, os técnicos não sofrem desconto de imposto de renda na fonte, que haveria com o registro em carteira. Os produtores não pagam encargos sociais e os técnicos sonegam imposto.
Burlar a lei não é difícil. O caminho tradicional é fazer contratos de prestação de serviço. Em vez do registro em carteira, o técnico recebe o salário e dá recibo, como autônomo, ou nota fiscal -quando abre uma microempresa, expediente que está se tornando comum nos sets de filmagem.
Esses contratos são a rigor ilegais e não podem ser registrados no sindicato. Os produtores, para evitar problemas, fazem contratos legais, em carteira, de apenas uma parte da equipe e os registram no sindicato. As formalidades são aparentemente cumpridas e ninguém vai depois fiscalizar o resto da produção.
Ninguém mesmo. O Ministério da Cultura dá recursos, mas não entra nessas questões. A Justiça do Trabalho só atua se houver reclamação -e nenhum técnico, ainda que se julgue prejudicado, vai reclamar. Os técnicos temem uma represália fatal: não conseguir mais trabalho, em um mercado fechado.
Denoy de Oliveira, que está em fase de acabamento do filme "A Grande Noitada", como a maioria, não seguiu a lei em sua produção. Alguns contratos só foram feitos e registrados no sindicato quando as filmagens haviam terminado. Outros fizeram contratos de prestação de serviço.
"Os custos sociais são muito altos, até 64% do valor do salário. Com esses contratos de prestação de serviços o técnico pode ganhar mais, porque a produção pode pagar melhor e ele fica isento de alguns impostos", argumenta o diretor.
Volume
Carlos Reichenbach, diretor ("Alma Corsária") e também técnico, acredita que os problemas possam diminuir com o aumento da produção. Com mais filmes por ano, os técnicos podem cobrar menos e tornar possível o registro em carteira.
"Na época em que há muito trabalho, todo mundo trabalha permanentemente e pode cobrar menos. Entre os anos 70 e 80, quando havia mais de cem longas por ano, era muito comum assinar carteira. No período de Fernando Collor de Mello a produção caiu quase a zero e agora está sendo retomada, com uns 40 filmes no ano passado", diz Reichenbach.
Mas o mesmo diretor endossa o diagnóstico comum: "Se for seguir a legislação à risca, ninguém faz filmes", diz. "A contratação fora da carteira é a única forma de viabilizar a produção."
Única ou não, é uma forma ilegal, proibida expressamente na lei 6.533.

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