São Paulo, sábado, 27 de janeiro de 1996
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A traição de Rita Hayworth

RUBENS RICUPERO

Junto com Ava Gardner, Rita Hayworth foi um dos mitos de minha geração. A razão dos seus desenganos amorosos, dizia, era que os homens de sua vida "iam dormir com Gilda e acordavam com Rita Hayworth".
Essa sensação me assaltou, dias atrás, ao terminar a leitura de um estudo encomendado pela Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) para uma próxima conferência sobre o modelo asiático e a distribuição de renda e preparado pelo economista coreano Jong-Ti You sobre "Distribuição de Renda e Crescimento na Ásia do Leste".
Esperava encontrar no trabalho uma receita, ou ao menos uma luz de esperança para superar o mais intratável, desesperador e vergonhoso dos problemas brasileiros: a desigualdade de renda que nos enterra no último lugar do "ranking" de 65 países estabelecido pelo World Development Report de 1994.
O índice é calculado, como se sabe, dividindo a porcentagem da renda que beneficia os 10% mais ricos da população pela parcela correspondente aos 40% mais pobres.
O espectro de variação se estende do índice mais igualitário, da Hungria (0,8) ao mais injusto, do Brasil (7,3), com a média de 2,3. A taxa brasileira representa um valor nove vezes superior à mais baixa.
Nessa corrida às avessas rumo ao troféu da iniquidade e do desequilíbrio, superamos com folga nossos companheiros de infortúnio, co-herdeiros da colonização ibérica: Bolívia, Venezuela, Peru, Costa Rica, São Domingos, México, Colômbia e Chile.
Minha esperança de encontrar inspiração na Ásia derivava de uma crença generalizada expressa no seguinte trecho do livro do Banco Mundial sobre "The East Asian Miracle" (1993): "As oito economias asiáticas de alto desempenho cresceram mais rápida e consistentemente do que qualquer outro grupo de economias no mundo de 1960 a 1990 (...). Alcançaram também níveis de desigualdade excepcionalmente baixos e declinantes, ao contrário da experiência histórica e a evidência contemporânea em outras regiões".
Caso correta, a afirmação indicaria não haver qualquer determinismo ou inevitabilidade na experiência ocidental de que o desenvolvimento resulta de um processo de acumulação de capital baseado nos lucros, com efeitos concentradores da renda ao menos nos estágios iniciais.
Pareceria, ao contrário, que um crescimento acelerado poderia coexistir, ao mesmo tempo, com o rápido declínio da desigualdade, desde que os métodos asiáticos pudessem ser replicados por outros países.
Infelizmente, desde as primeiras páginas, o estudo do economista coreano vai implacavelmente transformando a Gilda-mito da descrição do Banco Mundial na Rita Hayworth de uma realidade menos glamourosa.
Após questionar critérios metodológicos como a escolha dos países incluídos na amostragem do banco a título de padrões de comparação, ele demonstra que três apenas das economias asiáticas -o Japão, a Coréia e Taiwan- merecem serem descritas como tendo de fato desigualdade excepcionalmente baixa mesmo quando se amplia o universo da comparação.
Mostra, em seguida, que, em termos de redução adicional da desigualdade, o desempenho dos asiáticos variou bastante, uma vez que na maioria dos países da área "a desigualdade tem estado em aumento considerável desde os anos 80, erodindo muitos dos ganhos anteriores", exceto no grupo intermediário -Malásia, Tailândia, Indonésia- e possivelmente a Coréia.
Sua primeira conclusão é que, já no ponto de partida, essas economias iniciaram o crescimento rápido com desigualdade acentuadamente baixa. Nos três relativamente mais igualitários -Japão, Coréia e Taiwan- isso se deveria sobretudo à extensa destruição de propriedade e relações de propriedade ocasionadas pela Segunda Guerra e pela Guerra da Coréia e à reforma agrária promovida, após 1945, pelas autoridades norte-americanas de ocupação, além da ênfase à educação primária nas três nações.
Essas forças provocaram, portanto, uma distribuição igualitária da terra, de fatores de capital e de recursos humanos num momento de grande peso da agricultura na geração de empregos.
É evidente que com o tempo e o declínio da importância relativa do setor agrícola, outras causas contribuíram para manter em níveis razoáveis a distribuição da renda.
Uma delas foi, sem dúvida, a enorme expansão do emprego em indústrias de mão-de-obra intensiva voltadas para a exportação, com aumentos constantes nos salários reais, que, em economias estáveis, não foram anulados pela corrosão inflacionária como no Brasil e na América Latina.
É difícil captar num artigo como este a riqueza de qualificações e matizes de um estudo de 50 páginas recheado de tabelas e gráficos.
Em resumo, porém, o trabalho reafirma o que já se sabia: em última análise, a distribuição da renda tem muito a ver com a distribuição da riqueza. Dificilmente se poderá esperar que a renda se distribua de forma equilibrada se a riqueza, isto é, os fatores de produção -terra e capital- estiverem concentrados em poucas mãos e o fator trabalho receber remuneração aviltada devido à estagnação econômica ou ao desemprego.
Já vimos que não houve milagre algum na Ásia, cuja melhor distribuição de renda se deve em parte a fatores históricos e em parte a um longo período de crescimento e expansão de empregos com baixa inflação.
Começamos mal portanto. Nosso ponto de partida -escravidão com latifúndio- não poderia ser pior. Em nossas plagas, nem guerra ou revolução, nem reforma agrária, nem o moderadíssimo imposto sobre heranças, usual até no conservador Reino Unido, estiveram presentes para transformar o modelo colonial num padrão menos desigual.
Nessa matéria, a nossa Constituinte de 1988, tão acusada de simpatias pró-esquerda (na estatização, por exemplo), demonstrou credenciais direitistas acima de qualquer suspeita.
Se isso não bastasse, a doença da elevada inflação crônica não só acabou por destruir o dinamismo econômico que sempre nos caracterizou no passado, mergulhando-nos na estagnação e desemprego; como dissolveu pela alta de preços os poucos ganhos de salário real logrados no período desenvolvimentista.
Todos os brasileiros concordamos que a monstruosa distribuição de riqueza e renda é nosso problema central, a síntese do fracasso do nosso projeto de nação e de povo. Tendo restabelecido uma razoável estabilidade monetária, o país não pode adiar ainda mais o resgate dessa dívida.
Por que não, então, com base em experiências como a asiática, a real, não o mito, por que não reagir à frustração e começar a definir e aplicar, a partir de agora, uma política ativista de correção das disparidades que sirva de mínimo denominador para o projeto nacional pelo qual todos ansiamos?

Agradecimentos a Manuel Puig pelo título.

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