São Paulo, sábado, 27 de janeiro de 1996
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O fio de barba do Estado

JOSÉ MARTINS FILHO

O recente acordo das centrais sindicais com o presidente da República, construído para aplainar o caminho da reforma da Previdência até o Congresso, não parece deixar dúvidas sobre a capacidade do governo de propor e fazer aprovar as reformas de base que a sociedade reclama.
Sem entrar no mérito do acordo, que certamente contém avanços significativos em relação às propostas até aqui apresentadas, uma questão relevante é perguntar-se (e cada um dos parlamentares se perguntará) se ele traduz efetivamente os interesses e expectativas dos quase 35 milhões de previdenciários -esses mesmos que, em algum lugar do passado, firmaram um contrato social com o governo, acreditaram poder vê-lo cumprido e, ano após ano, recolheram religiosamente a contribuição que lhes havia sido determinada.
O acordo teve o efeito devastador de colocar "à esquerda da CUT" os mais moderados críticos da reforma, ou seja, aqueles que acham que ela deve ser feita, porém nos limites impostos pelo estrito respeito aos contratos já firmados.
Depois dele ponderações por vezes sensatas tendem a ser interpretadas como manifestações de corporativismo e xiitismo. E verdades deixam de ser ditas. Por exemplo: que as sucessivas gerações de previdenciários cumpriram até aqui o seu papel, mas o Estado, historicamente, nem sempre. Fato é que a sociedade tem dúvidas, e não parece justo que se passe um rolo compressor sobre expectativas ou sobre dúvidas.
Se é verdade que no passado enormes somas de recursos da seguridade foram desviados para a construção de obras públicas, sem que tenham retornado ao caixa previdenciário; se é fato que ao longo da história a própria União deixou de recolher seus encargos previdenciários; se os novos recursos definidos para a seguridade não vêm sendo integralmente aplicados na área, como manda a Carta de 1988; se o estoque de dívidas para com a Previdência já alcança várias dezenas de bilhões de reais e se, apesar disso, o número de fiscais caiu de 8.000 para 3.000 em uma década -então a sociedade tem razão ao imaginar que a seguridade permite uma discussão mais ampla e requer, antes, uma profunda reforma administrativa.
Naturalmente, sendo este um governo sério, não se pode imaginar que seu intento é fazer tábula rasa dos sentimentos de toda uma geração de previdenciários. Mas sendo este também um governo consciente, deve saber que o horizonte de vida médio do brasileiro não é ainda alto o bastante para estimular a introdução de regras de Primeiro Mundo para cidadãos que ainda enfrentam condições sociais de Terceiro.
Essa contradição pode se transformar no gargalo do projeto da reforma no Congresso, se o Congresso decidir levar em conta a comoção provocada pela inexistência de regras de transição.
Pois sendo a Previdência muito apropriadamente um pacto entre gerações, não se deve esquecer que a geração em curso, crédula o bastante para crer no fio de barba do Estado, tem a consciência tranquila por ter honrado seus compromissos com a geração passada e com a futura. E disso, infelizmente, o acordo se esqueceu.

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