São Paulo, quarta-feira, 31 de janeiro de 1996
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'Duas Garotas' aposta em mar de clichês

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Tratando de um assunto não muito frequente no cinema -o lesbianismo-, "Duas Garotas in Love", de Maria Maggenti, consegue ser o mais banal possível. É uma comediazinha de "high school" americana, com bilhetinhos de amor, risinhos escondidos, notas baixas no boletim e aqueles armários de metal que sempre aparecem nos filmes desse tipo. Há fofocas, provas de matemática, algumas lágrimas e confusões, num registro romântico-abobado que é puro anos 50.
A única diferença é que em vez de um "boy meets girl", temos o "girl meets girl". Uma menina branca, criada por um casal de lésbicas, trabalha num posto de gasolina, é pobre e má aluna. Encontra outra, mulata rica e chiquíssima que gosta de música clássica e de Walt Whitman, e tem uma mãe executiva que a adora. Nasce o amor.
Preconceitos contra o homossexualismo? Claro, isso aparece em "Duas Garotas in Love". Mas não parecem constituir dificuldade maior do que era, num filme dos anos 50, a oposição dos pais ao sexo antes do casamento. O espectador fica num estado de tensão moderada: quando X vai ceder às seduções de Y? E o que acontecerá se a mãe de Y descobrir o namoro? No espírito de uma comédia romântica, os empecilhos surgem, mas o amor é mais forte.
A banalidade e a tolice não se desculpam, mas se explicam facilmente. E talvez sejam inevitáveis, num filme que quer justamente combater a homofobia. Uma vez que há "escândalo" no tema, uma vez que lesbianismo não é uma coisa amplamente aceita pela sociedade, é preciso que tudo seja mostrado da forma "mais natural" possível. E o padrão de "naturalidade", para a cultura hollywoodiana, é o saudável filme de namoricos no colégio.
Além de natural, o filme tem de ser otimista. Surge assim um certo dilema: feito de uma perspectiva antipreconceituosa, "Duas Garotas in Love" não pode levar o preconceito muito a sério. Sim, ele existe, mas ninguém vai sofrer demais por causa disso. O adversário é dissolvido em águas de rosas. Trata-se de uma história da "Biblioteca das Moças", ao pé da letra.
Claro que o que estou dizendo parte de um pressuposto, o de que "Duas Garotas in Love" tem uma pretensão militante em seus clichês açucarados. Talvez isso não seja verdade. Pode-se imaginar que, numa sociedade onde o lesbianismo fosse totalmente aceito, filmes bobocas sobre o amor entre duas meninas existiriam sem problemas, e não haveria nada de mais se imitassem os romancinhos heterossexuais de 50 anos atrás.
Seja. Mas então o filme de Maria Maggenti é mais de faz-de-conta ainda; pois o lesbianismo não é totalmente aceito. Aqui surge a ambiguidade maior de "Duas Garotas in Love": as duas adolescentes enfrentam problemas com a família, com as amigas, consigo mesmas, mas esses problemas são e não são causados pela sua preferência sexual. Metade do drama acontece porque se envolveram num caso homossexual. A outra metade, não.
Uma das meninas é criada por duas lésbicas: qual o grande drama de ela ser lésbica também? Nenhum; só que ela vai mal na escola, tem de estudar e não ficar namorando por aí... A outra menina leva uma bronca da mãe, mas a mãe parece estar mais brava por ela ter tomado um vinho francês do que por ter ido para a cama com uma garota... Criam-se, digamos, infrações acessórias no comportamento das duas, para que a "infração" básica conheça um tratamento otimista, ainda que atribulado.
"Quando a Noite Cai", filme de Patricia Rozema, também em cartaz em São Paulo, tem muitas semelhanças com "Duas Garotas in Love"; e ao mesmo tempo é um filme totalmente diverso. Conta um caso de paixão entre duas mulheres. Como no filme de Maria Maggenti, uma é mulata, a outra branca; ambientes sociais opostos; hesitações, flertes, sedução, entrega, felicidade final, vitória do amor.
Só que a grande beleza de "Quando a Noite Cai" está em levar a extremos o que em "Duas Garotas in Love" era amenidade e comediazinha. É um filme genuinamente romântico, e que sabe disso, ao contrário de "Duas Garotas", que é um romancezinho fingindo que não sabe. A falsa inocência teen, a primavera hormonal, as minissaias e camisetas são substituídas pela sexualidade adulta, pela opulência cenográfica, pelo figurino magnífico.
Alguém disse que os filmes de Hollywood contam a história de dois balões gigantescos, em forma de rosto humano, que terminam sempre colidindo num beijo. Paquale Bussières e Rachel Crawford não podiam ser dois balões mais distantes, em "Quando a Noite Cai". Uma é noiva de teólogo protestante, e ensina num colégio religioso; a outra é artista de circo, liberada no sexo e na vida.
O assédio da artista de circo à reprimida protestante não poderia ser mais bonito, mais fantástico, mais irreal. Surge aqui com toda força o tema da tentação diabólica. Não vou contar o filme, mas a maior sutileza de tudo é que a branca protestante, por moralismo e religião, vê-se como que forçada a se entregar à outra. Não por "naturalidade" do tipo "Duas Garotas", mas quase que por dever: dever de dizer a verdade aos outros e a si própria, dever de respeitar como pessoa o objeto de seu desejo.
Há diálogos de grande profundidade nesse filme. O pastor a quem a moça confessa sua paixão diz: "Dar nome ao que sentimos ajuda a gente a dominar o que sentimos". O noivo dela prefere o contrário: "Não diga nada -não me conte nada- uma coisa passageira... isso que você... é só uma coisa que passa".
Grande problema, esse do rótulo. Dizer abertamente que se é "homossexual" constitui certamente um passo na liberação individual e de grupo. Mas recusar um rótulo pode ser também afirmar com mais força a própria liberdade. Todo segmento vitimado pela discriminação tem de enfrentar esse dilema, em que a explicitação da identidade passa um pouco pela aceitação de algo que foi construído pelo adversário, pelo discriminador.
"Quando a Noite Cai" mais sugere do que aborda essa questão. Sua explicitude apaixonada está menos nos diálogos, na situação dramática, do que na extrema riqueza visual que ostenta. Céus, luzes, vôos e ameaças de queda, em primeiro lugar. Cenas num trapézio anunciam cenas de sexo; uma flecha atirada pela moça do circo na janela da professora protestante leva uma declaração de amor; as duas se juntam numa aventura de asa-delta. O filme inteiro oscila entre o mergulho -no nada, na morte, na perdição, no inferno- e o vôo vazio, desbragado e doido do desejo.
A música é de uma precisão extrema. Há cenas em que as atrizes parecem apenas coreografar, num jogo de recusas e vontades, o que se ouve nas sala de cinema. Só em alguns filmes de Bergman encontra-se tanto estilo, tanto drapejado, tanto extremismo cinematográfico, tanta ligação entre puritanismo e circo.
A militância homossexual é mais consciente, aqui, do que em "Duas Garotas in Love". O final feliz não é "naturalizado", mas intensificado, num toque desesperadamente fantasioso, que não vou contar qual é. Mas que serve para dizer: "Isto aqui é pura fantasia", na vida real as coisas não são assim.
É um pouco a lição de Bergman, a lição de Fellini sobre o cinema -apontar sua falsidade e seu fascínio. Talvez a lição seja válida para todas as paixões, homossexuais ou não.
Em "Duas Garotas in Love", a má aluna começa a ler poemas de Walt Whitman num livro que a namorada deu para ela. Fuma vários cigarros de maconha e pára diante de um verso, dizendo às gargalhadas: "Meu Deus, como isso é intenso!". Melhor elogio, e melhor crítica, não poderiam ser feitos a "Quando a Noite Cai".

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