São Paulo, quarta-feira, 31 de janeiro de 1996
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O ministro e a freira

ANTONIO DELFIM NETTO

O ministro Malan afirmou que: "o Plano Real pecou apenas em um ponto: a política de juros elevados, que provocou no primeiro ano do governo Fernando Henrique Cardoso um déficit nas contas públicas de 20 bilhões de reais".
Essa afirmação é logicamente equivalente à do sujeito que atropelou a freira e desculpou-se dizendo que pensou que fosse um pinguim de 1,70m de altura!
Em primeiro lugar, a política de juros reais elevados já vem desde o final do governo Collor. Desde então pretendia-se acumular reservas internacionais para realizar mais uma tentativa fácil de reduzir a inflação, congelando a taxa de câmbio.
Para defender um real excessivamente sobrevalorizado (este sim, o pecado, e capital!), transformou-se o Brasil num verdadeiro "baú da viúva", onde todo mundo continua a vir buscar a sua lasquinha...
Quando eu era economista esse dinheiro tinha um nome: "vagabundierende Gelder" ("hot money", dinheiro errante, porque não, vagabundo, mesmo?).
Hoje ele melhorou muito socialmente. Trocou de nome e se chama "aplicações em portfólios em países de economias emergentes", engana na língua de Black-Scholes e frequenta as mais finas sociedades do universo...
Em segundo lugar, um dos fatos estilizados mais conhecidos desse mecanismo de reduzir a inflação pela sobrevalorização do câmbio é que ele exige juros elevadíssimos.
Em terceiro lugar, é também fato estilizado e muito conhecido que essa política produz efeitos devastadores sobre a estrutura produtiva e sobre a higidez do sistema financeiro.
Em quarto lugar, a deterioração das contas públicas que a elevada taxa de juros produz acomoda-se pela compressão do setor privado e/ou o aparecimento do déficit em conta corrente, exatamente o que está acontecendo no Brasil.
O déficit em conta corrente está financiando não apenas investimentos produtivos, mas também um bom pedaço do déficit público. Ele representa o triste papel de substituto do famigerado "imposto inflacionário".
O mais grave é que isso acabou produzindo um equilíbrio macroeconômico que só se mantém com baixas taxas de crescimento, o que torna ainda mais doloroso o ajuste fiscal.
Em quinto lugar, não há fato mais estilizado e mais conhecido do que a destruição da higidez do sistema financeiro produzido por longos períodos de altas taxas de juros reais. Elas acabam solidarizando banqueiros e devedores na política suicida de empréstimos "auto-renováveis" (o "evergreen lending"), que destruiu o sistema bancário chileno, argentino, israelense, mexicano, indonésio etc.
Para se protegerem da falência e esconder que estão insolváveis, banqueiros e empresas embarcam numa auto-renovação de empréstimos que jamais poderão ser honrados.
Quando existe seguro de depósito, a competição entre os próprios bancos acaba produzindo um aumento da taxa de juros, porque os depositantes vão atrás da remuneração e esquecem o risco. Há, então, uma enorme seleção adversa: os bancos que pagam maior remuneração vão concentrando o crédito de pior qualidade.
Nada disso é novidade. Mas confundir juro real absurdo com "pecado" da política econômica é certamente uma novidade.

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