São Paulo, quinta-feira, 10 de outubro de 1996
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O eleitor misterioso

MOACYR SCLIAR

Coisas estranhas acontecem nessas cidades em que os vereadores se elegem com poucos votos. Numa localidade, de cujo nome não me quero lembrar, um candidato tornou-se edil com seis votos: o dele mesmo, o da mulher e os dos quatro filhos. A apuração concluída e as celebrações encerradas, ele reuniu a família e, radiante, anunciou a sua primeira iniciativa: iria solicitar a criação de cinco cargos de assessor para o seu gabinete, todos com bom salário. E explicou:
- Acho que tenho de retribuir a confiança que vocês depositaram em mim. Além do mais, a família que assessora unida permanece unida e eu me elegi exatamente com esta divisa: "Tudo pela família." Filhos: vocês estão com a vida feita!
Os quatro rapazes aplaudiram com entusiasmo. O eleito voltou-se para a esposa:
- Mas o melhor cargo, de assessora especial, com direito a secretária e carro, vai para você, querida. A você, mais que a ninguém, devo essa extraordinária vitória. Você sempre esteve a meu lado, silenciosa, mas forte. Quando você tomar posse, quero dar a maior festa que este município já viu.
Os filhos tornaram a aplaudir, mas a esposa, estranhamente, permaneceu em silêncio. O vereador se inquietou:
- Que foi, querida? Eu disse alguma coisa inconveniente?
Ela, quieta. Ele insistiu:
- Fale! Eu por acaso ofendi você?
- Não - respondeu ela, por fim. Não me ofendeu. Mas cometeu um erro.
- Erro? Que erro?
- Eu não votei em você.
- Como? - Ele, atônito. - Você, a minha esposa, não votou em mim?
- Não. - Hesitou um instante, e explicou: - Meu raciocínio foi o seguinte: se você cuidar da cidade como cuidou de nossa casa e de seus negócios, vai ser um desastre. Você é um incompetente, marido. Infelizmente, tenho de lhe dizer isso. Você não serve para nada. Honestamente, eu não podia votar em você.
Ele bufava de raiva.
- Mas então -gritou- quem é que votou em mim? Eu neste município só tenho inimigos! Quem cometeria essa afronta de votar em mim -contra a minha vontade?
A família ficou em silêncio. E então o vereador descobriu que a partir daquele momento ele teria um problema que lhe tiraria a paz durante toda a gestão, quem sabe pelo resto da vida. A sombra do eleitor misterioso o perseguiria para sempre.

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