São Paulo, domingo, 13 de outubro de 1996
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"O regime náo é dos excluídos"

DO ENVIADO ESPECIAL

A seguir, Fernando Henrique Cardoso comenta algumas mudanças políticas no Brasil dos últimos 15 anos e diz quem tem mais força no jogo de poder atual. "O regime atual está dando possibilidade a que os setores mais avançados do capitalismo tenham prevalência. É progressista, pois incorpora massas ao consumo. Mas também não vou dizer que ele seja dos excluídos, porque não tem condição de ser", diz o presidente.
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Folha - Num texto sobre o governo Figueiredo, o sr. lamentava e criticava a "apatia da democracia conservadora" daquele momento. O sr. equacionava a situação nos seguintes termos: havia institucionalização de certas regras de acesso ao poder, sem que delas derivasse o curto-circuito entre política e mudança econômica de base. Os que lutavam contra a exploração se limitavam à luta imediata e abominavam a política, regressando ao plano do ético. Dá para usar os termos dessa equação para descrever a realidade hoje ou é preciso refazê-la toda?
FHC - Tem alguma coisa que é comum, mas tem que refazê-la, pois hoje você não tem mais um modelo de desenvolvimento fundado no Estado.
Folha - Então vamos por pontos. As regras de acesso ao poder estão institucionalizadas, sem que ocorra o curto-circuito entre política e mudança econômica de base...
FHC - Hoje ocorre. Veja o Movimento dos Sem-Terra (MST). Tem uma reivindicação de mudanças profundas, na estrutura da propriedade. As regras de acesso ao poder são as da democracia...
Folha - Eleição, mas...
FHC - Mas aqui você tem um duplo problema. Há a eleição, que dá a legitimidade ao poder. Mas há a ação também da sociedade civil. E o Estado que é mais poroso hoje, mais aberto às discussões com toda a sociedade.
Folha - Mas o curto-circuito entre política e reivindicação social ainda é de baixa intensidade...
Cardoso - Existe. Você vê a dificuldade, por exemplo, de passar no Congresso o rito sumário, que vai passar. Mas hoje há política.
Folha - Os reformadores que retornam ao plano do ético...
Cardoso - Isso ainda tem. Há pouco você estava me perguntando qual era a resposta: "a solidariedade, só"? Ainda tem quem recuse que é preciso fazer política, não se prender apenas aos princípios éticos. Frequentemente se ouve gente dizendo: "Ah, não ponho minhas mãos nisso". Na Igreja isso ocorre, às vezes na OAB também. Os sindicatos fazem política.
Mas há setores que ainda recusam a política, se refugiam. É uma regressão. A ética é um componente importante das mudanças e da política. Mas quando se deixa de ver a política como um instrumento de transformar a realidade, quando se fica apenas no plano dos valores, tudo bem, você salvou sua alma mas não mudou nada.
Folha - Quem mais o sr. coloca nessa categoria...
FHC - Veja a crítica ao governo que se resume na definição "neoliberal". É puro principismo, é puro plano ético. E daí? É mesmo? Não é nada. É só uma condenação moral. Partem de uma deformação -como se o governo fosse neoliberal- e fazem a condenação moral. Não vêem a realidade, não vêem as articulações, não vêem o que está mudando. Não vêem nem os dados. Isso bloqueia a ação política.
Folha - Nesse texto o sr. fazia a pergunta: de quem é o regime?
FHC - Indiscutivelmente, o regime está rearticulando o sistema produtivo do Brasil. Portanto ele está dando possibilidade a que os setores mais avançados do capitalismo tenham prevalência.
Seguramente ele não é um regime a serviço do capitalismo monopolista nem do capitalismo burocrático, mas daquele que é competitivo nas novas condições de produção. Mas ele não é só isso. Ele incorpora massas ao consumo. E, nesse sentido, ele é socialmente progressista -progressivo, progressista, como queira. Não é das classes médias burocráticas, nem das classes médias que ficaram desligadas desses dois processos -a modernização produtiva e da universalização dos bens sociais. Não é dos corporativistas, não é do setor burocrático anterior.
Mas também não vou dizer que ele seja dos excluídos, porque não tem condição de ser. Aspiraria a poder incorporar mais, mas não posso dizer que seja.
Folha - Há quem diga -pessoas de acordo com o projeto do governo- informalmente: vai ter gente que não vai ser incorporada mesmo, só vai restar o "sopão" para eles. Uns 40 milhões vão ficar restritos ao "sopão" (dos pobres).
FHC - (grave) Hoje quantos são restritos ao "sopão"? São 80 milhões? É o que estou dizendo.
Folha - Então 40 milhões vão ficar no "sopão"?
FHC - Não sei, não sei quanto vai ser. É possível. Como não vejo a história fechada, nunca, não sei o que vai ocorrer. Acho que esse vai ser um problema. Certos setores não estão nessa parte dinâmica da economia. E daí? Eles existem. O Estado tem que ser responsável por eles também. São necessários programas específicos de incorporação dos excluídos: a reforma agrária, programas de assistência às pequenas empresas, à agricultura familiar, por exemplo.
Não sei quantos serão os excluídos. Pode-se errar muito, pois essa análise depende dos dados demográficos, sobre os quais, no Brasil, muita gente fez estimativas erradas. Acho que os excluídos são muito menos...
Folha - Do que os 32 milhões do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada)?
FHC - Eles já baixaram a estimativa para 16 milhões -não é? Não me arriscaria a dizer quantos são. Mas, não nego que, provavelmente, na dinâmica atual, não há força para incorporar todo mundo. Temos que aumentar a dinâmica para incorporar o máximo.

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