São Paulo, domingo, 20 de outubro de 1996
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Para historiador, morte foi há 301 anos

FERNANDO DA ROCHA PERES
ESPECIAL PARA A FOLHA

São quatro as variantes impressas de uma biografia de Gregório de Matos e Guerra, escrita na primeira metade do século 18 por Manuel Pereira Rabelo, nas quais indicou duas datas para o nascimento do poeta: 1623 e 1633. Tanto os poemas de Gregório de Matos, quanto esta biografia ficaram guardados em manuscritos realizados por copistas em Portugal e na Bahia. Uma quinta variante está em um códice datado da Bahia, de 1745, com o qual estou trabalhando no momento.
Foi com a intenção de revisar as variantes que empreendi -e ainda realizo- uma pesquisa de fontes de arquivo (inéditas) e impressas, em Portugal e no Brasil, e pude reconstruir a vida do poeta, desde o seu nascimento até a sua morte, que agora apresento resumidamente. A biografia da autoria de Rabelo está assentada em informações da tradição oral sobre o poeta e, por isto mesmo, tive que preencher as lacunas e erros existentes, assim como, em certos casos, concordar, em parte, com o que nos legou aquele primeiro e variável perfil do poeta.
Não é minha vontade polemizar sobre datas que considero, no meu ofício de pesquisador e historiador, como já estabelecidas e abonadas; nasceu Gregório de Matos em 1636, em Salvador, Bahia, pois assim pode-se ler e interpretar e fazer aritmética, a partir de um documento com sua assinatura ("Sumários Matrimoniais da Câmara Eclesiástica de Lisboa", Biblioteca Nacional), no qual ele diz ter 25 anos em 1661 na petição para casar em Portugal; morre o poeta em 1695, em Recife, no dia 26 de novembro, seis dias após a chegada à Pernambuco da notícia da morte de Zumbi dos Palmares. Esta é a história natural do poeta, delimitada por duas datas.
Esta notícia da morte de Gregório de Matos pode ser lida na biografia do Rabelo, e basta um simples esforço de bem ler um documento que vincula a morte dos dois personagens -o poeta e o líder negro- recorrendo-se, de resto, à datação já estabelecida da morte de Zumbi. Na Bahia comemoramos os 300 anos da morte do poeta, discretamente, pois outro ícone histórico estava na boca do povo negro do Brasil e da Bahia, da mídia e do governo. Em dezembro (de 9 a 11), como o apoio de várias instituições, haverá um encontro sobre Gregório de Matos e sua obra, na Bahia, intitulado "O Poeta Renasce a Cada Ano".
Contestar estas datas (1636-1695) ou ignorá-las é perda de tempo; só os registros de batismo e óbito poderiam, se localizados, servir como prova em contrário, pois, como disse Antonio Houaiss: "...o fato é que a pesquisa histórica em torno de Gregório de Matos já atingiu um inesperável grau de documentação".
O menino Gregório estuda humanidades com os jesuítas do Colégio da Bahia, no Terreiro de Jesus, perto da sua morada -não precisamente localizada- e segue, em 1650, para Lisboa, onde aguarda o dia de prestar exame para ingresso na Universidade de Coimbra, em 1652, da qual sai graduado em direito canônico no ano de 1661.
Este menino, e depois "O Boca do Inferno", sempre contou com a proteção de uma família extensiva poderosa, cujos avoengos e pais aportaram do norte de Portugal, os quais, incluindo a parentela, foram proprietários rurais, senhores de engenho, fazendeiros de gado, argentários, vereadores etc., com ligações junto ao tribunal da Inquisição: seu avô Pedro Gonçalves de Mattos foi "familiar" do Santo Ofício na Bahia.
Sua condição de bem nascido, filho de Gregório de Mattos e Maria da Guerra, sem sangue de judeu, mouro ou negro, conforme Processo de Habilitação de Genere, não sendo descendentes de oficial mecânico, deu-lhe estatuto para ser nomeado Juiz de Fora de Alcácer do Sal, em 1663, na qual Vila foi Provedor da Santa Casa de Misericórdia. De brancura auto-referenciada em sua poesia, casa com Michaela de Andrade, filha de um magistrado, fato este que facilitou a sua ascensão para juiz de órfãos e juiz do cível em Lisboa, com sentenças publicadas em obras de jurisprudência e comentários.
Como procurador da Bahia em Lisboa participou das Cortes reunidas e realizadas em 1668 e 1674. Viúvo em 1678, batizando uma "filha natural" em 1674, trata de retornar ao Brasil em 1682 para exercer os cargos de desembargador da Relação Eclesiástica e tesoureiro-mor da Igreja da Sé, quando recebe a tonsura (ordens eclesiásticas menores), passando à condição de padre por ser um canonista. Em 1684 é destituído das funções no clericato por se recusar a receber ordens maiores, a usar batina, e por levar uma vida "sem modo de cristão".
Ainda na década de 80 casa com Maria de Póvoas e será denunciado ao tribunal da Inquisição, em 1685, por seu comportamento e sátiras, por viver abertamente as suas antinomias entre o sagrado e o profano, típicas do barroco, em uma época de grande censura por práticas heréticas. Este processo (Inquisição de Lisboa, "Cadernos do Promotor", Arquivo da Torre do Tombo) contra o poeta não teve curso, apesar das denúncias serem graves, tendo em vista o prestígio acumulado pela família dos Mattos da Bahia.
Em 1694 o poeta é despachado por seus amigos para Angola, pois os seus poemas, contra tudo e contra todos, sátiras de enorme virulência, até mesmo escatológicas, atingiam as autoridades civis, militares e eclesiásticas e também a cidade da Bahia, cujos habitantes são chamados, certa feita, de "canalha infernal".
Este é o poeta mazombo (filho de português, branco, nascido no Brasil, conforme a terminologia de Marcgrave), que, vivendo na Bahia durante 26 anos, vai maldizer para ela ter retomado e sentenciá-la como "peste do pátrio solar". É este poeta que irá criticar, com sua sátira, a babel de gentes e línguas faladas na cidade, o comportamento de seus habitantes, certamente os "donos do poder" e os "mulatos desavergonhados", ao dizer que o nome Bahia pode conter dois ff... "um furtar, outro foder". Foi por estas e outras que o poeta seguiu para Angola e de lá retornou em 1695, depois de envolver-se em uma rebelião de militares, traindo-os em seguida, e tendo, como recompensa, a sua volta à Recife, proibido de botar os pés na Bahia.
Este é um Gregório de Matos que venho desenhando, sem os clichês de nativista, mulato, místico, capadócio, orixá e toda uma lavra de adjetivos e apelidos que distorcem a figura de um homem barroco, que viveu as contradições do seu tempo, de um caráter ferino e áulico, que voltou para a Bahia, depois de ter morado durante 30 anos em Portugal, onde foi reconhecido como jurista e poeta, e veio a morrer, em Recife, com uma febre -malária contraída na África- aos 59 anos, deixando uma poesia lírica, sacra e satírica que é um tesouro da literatura de expressão brasileira e portuguesa.
Gregório de Matos não publicou seus versos quando vivo, editados só a partir do século 19, ficando a sua poesia guardada em dezenas de códices manuscritos, fato este que revela a sua circularidade, a sua popularidade; poesia que levou-o a ser denunciado à Inquisição, como também foi o seu contemporâneo Antonio Vieira (1608-1697), prisioneiro do Santo Ofício, em Lisboa, por sua "palavra empenhada" nos seus "Sermões" e escritos em defesa dos judeus, cristãos-novos e índios. Duas importantes personalidades do século 17, que estou cuidando de aproximar quando das comemorações dos 300 anos da morte do grande jesuíta.

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