São Paulo, domingo, 20 de outubro de 1996
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A traição dos intelectuais

RENATO JANINE RIBEIRO
ESPECIAL PARA A FOLHA

O professor de filosofia da Unicamp, Roberto Romano, examina em seu último livro a dívida do filósofo iluminista Diderot com dois pensadores da tardia Antiguidade grega, Luciano e Plutarco. Não sendo helenistas nem eu nem os leitores do Mais!, o que farei nesta resenha é realçar o sentido dessa obra, seus pressupostos e consequências, até porque Roberto Romano é um dos intelectuais brasileiros mais preocupados com a moral do poder, e por isso tem cabimento indagar a moral da história com a qual ele trabalha.
A tese de "Silêncio e Ruído" é que se ignora a importância que teve para Diderot, ao escrever "O Sobrinho de Rameau", a referência ao grande satírico que foi Luciano, devastador em sua crítica aos bajuladores da Antiguidade.
Como se produz uma linguagem que procurara, antes de mais nada, agradar aos poderosos? eis a questão. E por que tantos homens de letras assim procedem, querendo agradar às diversas figuras que no curso da história assumiu a dominação, e que hoje culminam no mercado? eis o horizonte no qual se move Romano.
Porque há um forte senso moral nesse livro, como em outros textos de Roberto Romano -como sabe quem lê seus artigos de opinião neste jornal. O problema para ele é menos o do poder -sobre o qual pouco se estende- que o da "trahison des clercs", para usar um termo célebre, o da traição dos intelectuais. Por que aqueles que, no interior da sociedade, melhor dominam a palavra tantas vezes a usam a favor do poder, e não para limitá-lo ou controlá-lo?
Tornou-se quase consensual, em nosso tempo, entender a política como se opondo ao predomínio irrestrito da força. Parecem superados o general prussiano Clausewitz, que dizia no século passado que a política é a continuação da guerra por outros meios, ou aqueles marxistas que compreendiam a política como mera relação de forças.
Hoje se tende a pensar a política -que propriamente dita só pode ser democrática- como a restrição que a palavra opõe à força. Esta pode ser a força bruta, ou física, mas também o domínio irrestrito da economia, da corrupção (tema caro a Roberto), da fraude nas instituições. Só há política ou democracia quando, em vez da circulação unilateral da força, temos o diálogo, a interlocução entre os homens, isto é, a sua igualdade na linguagem.
Assim, a política consiste em contestar o monólogo, o predomínio de uma fala ou prática que negue, aos que estão "por baixo", o direito de responder ou retrucar. Essa convicção, aliás, também é cara a Roberto Romano, que em seu primeiro livro já atacava a pretensão da Igreja a ser "a voz de quem não tem voz". Falar em nome do outro poder ser, às vezes, outra forma de calá-lo.
Ora, se esta definição que expus em rápidas pinceladas tem valor, o que impede o poder de se tornar despótico é precisamente esse grande distintivo da espécie humana em face das outras: uma linguagem rica. Evidentemente, todos os humanos dispõem desse instrumento (e repito que é ilegítimo uns o usarem para falar por outros), mas o que destaca os intelectuais é que eles são quem melhor o maneja.
Daí que Roberto Romano se preocupe com a responsabilidade do homem de idéias, do homem de letras: ainda que ninguém lhe tenha conferido um mandato, ele, por seu acesso privilegiado às palavras, lida com o instrumento mais adequado a limitar o poder.
Isso pode parecer fútil a quem define como verdadeiro poder o das armas (como a esquerda acreditou na época de sua ilusão guerrilheira) ou o do dinheiro, mas soará como decisivo a quem preze a dignidade do homem. Esta se deve a sua capacidade de, pensando, limitar tudo o que é bruto, tudo o que é mera força. Não que a força seja vencida: mas vale apostar no ideal de que tudo o que inconscientemente nos governa possa ser, ainda que a duras penas, conhecido, discutido, elaborado. Essa é a tarefa humana. Esse é também, no complicado processo pelo qual nos fazemos humanos, o papel mais nobre que possa ter o homem de idéias.
E por isso nada é pior o que o intelectual prestar-se ao papel do bajulador. Pela fala sem sentido, insignificante, pela garrulice, ele se submete -em troca de um prato, a exemplo do sobrinho de Rameau- às piores humilhações. E merece-as, porque traiu o sentido mesmo de sua escolha, que é a de pensar e falar.
Onde, nisso, entram as referências eruditas a Luciano e a Plutarco? Penso, dado que elas vão e vêm ao longo da obra, numa aparente desordem que me parece de ordem musical, que seu maior sentido para o leitor estará em mostrar a recorrência do motivo. Desde os antigos aos modernos se pergunta o valor ético dos elos entre o homem desarmado, que optou pelas letras, e o poder que distribui bens e prestígio.
Este o sentido da sátira, da qual diz Roberto que é uma "característica da cultura antiga: a zombaria contra a adulação, nuclear nos relacionamentos do poder e da riqueza" (pág. 112). Mas é neste ponto que não concordo com o autor. Se é mais que justo saudar os poderes do riso, em sua luta contra a dominação -e seria ocioso elencar os autores em que isso aparece, Lorenzo Valla, Marx-, há porém que distinguir os registros do riso, e perguntar se este não poderá trazer em seu bojo algum autoritarismo.
Não são poucas as teses sobre o riso, de Aristóteles a Umberto Eco. Mas, para quem pensa a contestação ao poder, é essencial distinguir o riso subversivo e aquele que reprime a diferença, a dissidência.
Sabemos que importância tem, em nosso humor televisado, o castigo aos modos do homossexual maneiroso, da mulher fútil e gastadeira. Assim, João Hansen apontou, há alguns anos, o caráter conservador das sátiras de Gregório de Matos: longe de ser o crítico irrestrito das mazelas de sua sociedade, ele terá sido -também- o censor dos comportamentos dissidentes, como os dos cristãos-novos.
É esta a dúvida que cabe quando se louva a sátira como dispositivo que devasta o poder. Será que "castigar os costumes pelo riso" não traz um forte risco de reprimir a divergência? Será que demasiadas vezes as críticas ao poder não se acompanham de uma censura à dissidência moral? Basta ver como hoje, no mundo islâmico, a reação fundamentalista à corrupção das elites leva de roldão os direitos das mulheres.
Este me parece o risco frequente da luta contra a corrupção: com a crítica à destruição da coisa pública pelos maus governantes, com o empenho pelo fator ético no interior da política, muitas vezes acabam confundidos os costumes dos detentores do poder e os costumes que estão mudando na sociedade, como hoje sucede, mais que tudo, em matéria sexual.
O riso anticorrupto por isso nem sempre encontra seu devido tom, oscilando entre a condenação ao governante ladrão e a censura aos modos em mudança. Penso que é isso o que torna a sátira um gênero particularmente complicado, nem sempre feliz, por sua dificuldade em lidar com o novo, por sua tendência a medir o presente pelo passado.
E aqui não compartilho a visível simpatia de Roberto Romano pelos satíricos; ou, pelo menos, me parece faltar uma modulação histórica e social da força crítica do riso, conforme ela conteste os poderes no Estado (a corrupção das elites) ou os costumes da sociedade. Mas esta pequena discussão apenas é testemunho do respeito que tenho por uma obra que vale tanto pela erudição quanto pelo empenho que move o autor a escrevê-la.

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