São Paulo, domingo, 20 de outubro de 1996
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Floretes agudos e porretes grossos

JOÃO ADOLFO HANSEN
ESPECIAL PARA A FOLHA

No Antigo Regime, dizia Adorno, a sátira aparecia como o florete agudo da distinção virtuosa dos melhores. Depois de algumas revoluções, deveria aparecer como o porrete grosso dos privilégios. Hoje, apropriações de "Gregório de Matos", classificação de um corpus poético colonial, ainda fazem o nome reencarnar-se retrospectivamente no seu tempo, o século 17, como um indivíduo liberal-libertino-libertário a profetizar o advento do "Barroco" e dos "neo-Neo" no retrô geral desse fim de século.
Na Bahia do século 17, a ordem era imposta, contestada, deformada e sempre reposta como padrão civilizatório em vários registros e meios materiais -entre eles, a sátira atribuída a Gregório de Matos, cuja produção e consumo incluíam-se na "política católica" do império português. Como uma prática fundamentalmente integrativa, então a sátira emanava do lugar sagrado do Rei-hipóstase de Deus, ou da Trindade, Potência do Pai, Sabedoria do Filho e Amor do Espírito.
Programática, a arqueologia da ruína satírica seiscentista reconstrói tensões, conflitos e mesmo contradições dos seus usos em seu tempo porque não quer o fóssil. A diferença arruinada do passado é, justamente, a medida crítica das petrificações do presente que efetuam "Gregório" como desmemória política e cultural.
Como Robinet demonstra para o "Ancien Régime", também na Bahia seiscentista a Potência subordina as outras primordialidades, assegurando o monopólio da violência da "razão de Estado" em nome da prudência política do governo cristão que declara visar ao "bem comum". O que se faz com Sabedoria e Amor, segundo a sátira, que glosa o absoluto da ordem. Não distingue "público" e "privado"; ratifica a proibição da imprensa e a censura intelectual; aplaude o Santo Ofício da Inquisição e a caça à heresia; reitera ordens-régias e bandos que determinam a destruição de quilombos, a "guerra justa" ou massacres de índios, as devassas de foros falsos de fidalguia, de desvios de impostos e contrabando, de sedições de soldados e da plebe, de amores freiráticos, de sexo nefando, de blasfêmia e bruxaria. Antimaquiavélica, antierasmiana, antiluterana, anticalvinista, antijudaica, absolutista, contra-reformada, define as medidas da Potência como ações prudentes, amorosas e sábias. Insiste: devem ser complementadas pelo degredo, pelos açoites, pela forca, pelo garrote vil, pelo auto-da-fé e mais castigos, exemplares, não menos prudentes, exercidos com Sabedoria pela Potência pública em nome do Amor do todo. Como se lê, em outro registro, nas "Cartas" e nas "Atas" do Senado da Câmara de Salvador, em nome do "bem comum do corpo místico do Estado do Brasil".
Na dilatação da Fé e do Império desse "corpo místico", o satírico metaforiza a analogia com que Santo Tomás de Aquino define o terceiro modo da unidade de integração das partes do corpo humano no comentário do "Livro 5" da "Metafísica", de Aristóteles. A unidade do corpo pressupõe a pluralidade dos membros e a diversidade das funções. Sua perfeição, que é ordem, resulta da sua integração harmônica como instrumentos para um princípio superior, a alma. Por analogia, o "corpus hominis naturale", o "corpo natural do homem", é o termo de comparação para o "corpo político do Estado", doutrinado como integração hierárquica, concórdia e paz de indivíduos e estamentos, súditos, que o compõem.
Na sátira, a autonomia é a paixão máxima que pode afetar os corpos. Nela, o "bom uso" político do "cada macaco no seu galho" reatualiza o meio-termo racional da virtude da "Ética Nicomaquéia", adaptando-o ao elenco completo das virtudes cristãs, como meios e fins da colonização: defesa do território, controle da população, escravismo, catequese, combate à heresia, manutenção dos privilégios, ócio dos doces negócios do açúcar e do sexo.
Assim, a virtude do satírico metaforiza o conceito de superioridade social da racionalidade de Corte absolutista. Então, a superioridade só é mantida pela submissão política e simbólica às instituições. A submissão implica uma lógica da distinção pela subordinação à vontade real, à etiqueta e ao dogma. Afirma uma sátira ao Conde da Ericeira, que se suicidou jogando-se de uma janela: "Quem cai da graça d'El-Rei/ cai da sua desgraça". Outra, que identifica "sodomia" e "judaísmo" pela perspectiva da instituição real: "Mandou-vos El-Rei acaso/ a Sodoma, ou ao Brasil? Se não viveis em Judá,/ quem vos meteu a Rabi?". Ainda segundo o padrão da racionalidade de Corte, a identidade virtuosa do satírico e a não-unidade viciosa dos satirizados são compostas como representação e por meio da representação. A virtude alega signos de "limpeza de sangue", catolicismo, fidalguia, liberdade, discrição e masculinidade, opondo-se às representações que pretendem a autonomia que lhe subverte a superioridade pressuposta: "Ou por limpo, ou por branco/ fui na Bahia mofino". Em outra: "Alerta pardos do trato,/ a quem a soberba emborca,/ que pode ser hoje forca,/ o que ontem foi mulato".
A posição deriva da forma da representação e, sendo figurado como parte de um conflito de representações, o satírico joga com a dupla hierarquia do seu ponto de vista. Quando afirma sua virtude e constitui o vício como obscenidade "contra naturam", a (des)constituição do tipo prova metaforicamente a (im)propriedade política do "topos". Na sátira, a tipologia semântica de virtudes e vícios é uma topologia pragmática de posições hierárquicas.
Instituição, a sátira produz a perversão como exemplaridade da regra. Para tanto, apropria-se da retórica de Quintiliano, Cícero e Aristóteles; emula a poesia de Juvenal; cantigas de escárnio e maldizer; o Cancioneiro Geral, de Resende; Camões, Suárez, Melo, Rodrigues Lobo, Gracián, Saavedra Fajardo, Quevedo, Góngora, Botero, Tesauro... Aplicando padrões coletivos e anônimos -"... é já velho em Poetas elegantes/ O cair em torpezas semelhantes"-, opera com técnicas de uma racionalidade não-psicológica, que estiliza e deforma os discursos das instituições e da murmuração informal do lugar. Sem pressupor a expressão do "eu", a autoria, o mercado e a originalidade, compõe o "público", na representação, como representação teológico-política de "discretos" e "vulgares": "O néscio, o ignorante, o inexperto,/ Que não elege o bom, nem mau reprova,/ Por tudo passa deslumbrado, e incerto".
Suas deformações obscenas são reguladas pelos dois estilos do gênero cômico: o ridículo, adequado aos vícios fracos, e a maledicência, própria dos nocivos: "Tudo, o que aqui vos digo,/ ora é zombando, ora rindo", diz o personagem satírico. Em "Gregório", domina a variante maledicente: "zombando". No caso, o satírico é um tipo virtuoso e indignado contra a corrupção do seu mundo, conforme uma afetação retórica de indignação. Como na sátira de Juvenal, que imita, afirma que está às avessas e que sua indignação também é caótica, como se a fala fosse expressão informal de sua ira. A sátira, contudo, é uma arte do insulto que finge não seguir nenhuma arte: suas paixões são naturais, mas não são informais. A irracionalidade da indignação é construída racionalmente e sua obscenidade pressupõe, como dizia Klossowski sobre Sade, as normas que a tornam visível e emolduram. Na poesia católica chamada "Gregório", o obsceno é alegoria do pecado mortal, a infração hierárquica, que corrompe a unidade do "bem comum". A anatomia horrorosa de vícios, com que compõe tipos vulgares, não é subversiva ou transgressora da ordem. Também na vituperação dos "melhores", o desbocado do "Boca do Inferno" encontra a realidade não na empiria, mas nas convenções hierárquicas da recepção contemporânea, pautadas pela concordância quanto à imagem caricatural que elabora, enquanto mantém em circulação os estereótipos de pessoas, grupos e situações.
A sátira não é iluminista. Concebe o tempo qualitativamente, como análogo do divino. Quando dramatiza os discursos do "corpo místico", perspectiva-os pelo dogma da "luz natural da Graça inata". Seu estilo misto formaliza a percepção do destinatário como participação da visão física e espiritual na Luz refletida nas agudezas obscenas. Não tem autonomia estética. A visão é ordenada retoricamente por uma proporção óptica, que compõe o "ponto fixo" do juízo que avalia os efeitos. Quase sempre, são quiasmas -"amizades de um Visconde, favores de um Conde vis"; "Senhora Dona Bahia, nobre e opulenta cidade,/ madrasta dos Naturais,/ e dos Estrangeiros madre"-, uma alegoria, cuja agudeza engenhosa lembra uma anamorfose. O "pli" deleuziano é, no caso, não a ilimitação do ornamental pós-moderno, mas a representação cenográfica da participação divina, que captura todas as suas espécies de efeitos na Unidade efetuada como pressuposto. Entre eles, o juízo agudo do satírico que produz a anamorfose.
As gracinhas de "Gregório" não conhecem o nosso psicologismo positivista. Muito menos, a negatividade da crítica iluminista, que acabou de debandar pós-utópica na revoada tucana. Seu etnocentrismo é de outra ordem: funde conceitos de estilo alto e baixo no misto deformado e satura-os com a unidade metafísico-política do absolutismo porque critica abusos repondo o bom uso. É "theatrum sacrum", nome que os jesuítas do tempo davam à representação em geral.
Na interlocução das representações, o satírico é o "discreto" agudo e racional que aparenta as virtudes heróicas do perfeito cavaleiro cristão, o engenho e a prudência. Representação, sua identidade é ficção, estilo de aplicar estilos, efetuando e afetando aparências. Nelas, tipos e categorias sociais -"negro", "pardo", "índio", "cristão novo", "judeu", "comerciante", "mulato", "ourives", "puta", "sodomita"- são a principal matéria satírica, porque identificados a vulgares viciosos. Vulgares porque doutrinados como naturalmente baixos, sem discrição; vulgares porque não sabem o seu lugar; vulgares porque pecam contra a natureza; vulgares porque se apropriam da convenção do "discreto" para com ela obter distinção e impor a classificação negativa a concorrentes. Segundo tópicas do mundo às avessas, a sátira reitera a natureza imutável do poder gravado nos corpos: "Desejo que todos amem,/ seja pobre ou seja rico,/ e se contentem com a sorte/ que têm, ou que estão possuindo".

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