São Paulo, segunda-feira, 21 de outubro de 1996
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Cabelos das meninas são arrancados

ANDRÉ MUGGIATI
DA AGÊNCIA FOLHA, EM TABATINGA

Quinta-feira, 19 de setembro de 1996. São 22h e a índia ticuna Edineusa Araújo, 13, aguarda a hora em que seus cabelos serão arrancados pelas mulheres mais velhas de sua aldeia.
Edineusa já aguarda dentro de uma tenda há três dias, enquanto lá fora acontece a sua "festa da moça nova", que marca o fim de sua infância.
Ela sente uma mistura de medo e ansiedade, pelo que está por vir.
Nos três dias em que está presa, Edineusa é visitada por sua tia, avó e por outras mulheres da aldeia, que lhe dão conselhos sobre os homens e sobre o sexo.
Depois que seus cabelos -nunca cortados antes- forem arrancados, Edineusa não será mais uma criança. Será uma moça. Poderá namorar e participar das festas da tribo.
Os cabelos são arrancados chumaço a chumaço. Aos poucos o medo de Edineusa vai se tranformando em dor. Ela chora.
Acabado o ritual, ela se une aos demais participantes da festa para dançar e se divertir.
Depois, durante meses, ela usará um lenço na cabeça para esconder sua careca.
Os ticunas vivem na região do rio Solimões e são 25 mil índios. Cerca de 5.000 falam português. Os outros falam apenas a língua ticuna.
Edineusa vive na tribo do Umariaçu, perto da cidade de Tabatinga, na fronteira do Brasil com a Colômbia e o Peru. Ela frequenta a escola da tribo, com alfabetização bilíngue e está na quarta série.
Os preparativos para a festa da moça nova são iniciados quando as meninas têm sua primeira menstruação.
Os pais da menina, ou seus responsáveis, vão plantar as roças de mandioca para preparar a bebida da festa, chamada caiçan. Os preparativos duram cerca de um ano.
Diz a tradição que após a primeira menstruação, os pais devem esconder a menina de todos.
Se um homem a vê nesse período fica "panema" (com um azar tão grande que não caça nem pesca mais nada, em ticuna).
Hoje em dia, entretanto, as meninas são liberadas do resguardo para frequentar a escola.
Três dias de festa
A festa dura três dias ou até a bebida acabar. Participam parentes de todas as aldeias, distantes vários dias de viagem de barco.
Os convidados vestem fantasias que representam as coisas da natureza. Há macacos, onças, pássaros, árvores, a mãe do vento. Cada um representa um papel.
O papel da onça, por exemplo, é roubar as crianças de suas mães. Já o macaco é o personagem erótico e simula estuprar todas as moças da festa.
Ele também tenta invadir a tenda onde está guardada a moça. Os parentes dela tentam protegê-la.
"Antigamente, se os parentes não a conseguissem proteger bem, a moça acabava sendo estuprada", diz o índio Nino Fernandes.
No último dia de festa, quando a bebida está quase acabando, a menina sai do seu abrigo para que seus cabelos sejam arrancados.
"Dói bastante, a gente chora", conta a prima de Edineusa, Edalina Araújo, 14, que passou pelo ritual no ano passado.
Depois, com os olhos vendados, a menina tenta acertar com uma lança um tronco de árvore localizado a cerca de cinco metros. Se ela acertar significa que, quando casar, terá filhos logo.
Depois de terminada a festa, todos os convidados levam alguma comida embora. As fantasias ficam com o dono da festa.
O índio Alcides Mariano Tawana, tio de Edineusa, foi quem promoveu a festa dela. Para ele, a festa da moça nova é uma obrigação. De acordo com Tawana, as moças que não têm a sua festa correm o risco de ser estupradas pelos outros índios.
Além dos ticunas, os índios cocamas também fazem a festa da moça nova.
Para o antropólogo francês, Sílvio Cavuscens, que realizou vários estudos entre os tikunas, o ritual "marca o assumir um novo papel social, de adulto".
Para ele, as adolescentes dão uma prova de coragem e maturidade ao se submeterem ao rito doloroso.

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