São Paulo, quarta-feira, 23 de outubro de 1996
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Escolher é preciso

ANTONIO BARROS DE CASTRO

Muitos não têm dúvidas. A globalização traz consigo um decálogo de mandamentos. É segui-los. Relaxe e aproveite. O resto é passadismo.
Outros vêm advertindo. O novo contexto impõe mudanças, sim; mas há importantes escolhas a serem feitas. A experiência dos demais países -especialmente fora da América Latina- deixa clara a existência de uma gama de alternativas para o tratamento, pelos poderes públicos, de questões colocadas pela globalização. Quanto às empresas, têm hoje diante de si, caminhos, variantes e atalhos -distintos nas suas consequências imediatas e, sobretudo, nas suas implicações futuras.
Fiquemos apenas com as empresas, terreno relativamente menos controvertido e tomemos como referência única a abertura.
Para enfrentar a maior competição a que se encontram agora expostas, as empresas devem buscar melhorias de produtividade. A proposição é usualmente apresentada como algo inquestionável. Alto lá, porém.
Aumentos substanciais de produtividade podem ser alcançados mediante corte massivo de trabalhadores. Para tanto, uma via consiste na elevação drástica do grau de automação, por meio de investimentos pontuais.
Podem também provir da terceirização de tudo o que possa sê-lo. Se ignorarmos a possibilidade de terceirização com o exterior, ficamos diante de duas possibilidades. Numa busca-se reforçar as empresas provedoras locais, na outra se recorre ao trabalho a domicílio, carente de vínculos sociais ou direitos de qualquer ordem.
Num caso, se estará colaborando para a formação de um tecido empresarial mais denso, para a formação de redes. O futuro parece apontar nessa direção.
No outro... bem, há que pensar duas vezes. Afinal, o trabalho doméstico, pago por peça, é uma figura historicamente clássica de sobreexploração. A produtividade, no caso, arrisca aumentar apenas no perímetro das unidades produtivas -onde, aliás, são levantadas as informações sobre produtividade. Se tomarmos contudo o conjunto dos trabalhadores (aí incluído o trabalho doméstico) a média pode estar até baixando. Poderíamos, a bem dizer, estar diante de uma cruel paródia da moderna tendência à descentralização. O resultado estaria, em suma, mais para século 19, que para a decantada proliferação de operadores simbólicos.
Mas a maior produtividade pode também ser buscada por meio do esforço sistemático no sentido de tirar mais rendimento de tudo: dos equipamentos (preexistentes e novos), das matérias-primas, da energia, do espaço disponível e da infra-estrutura. O sujeito aqui é inequivocamente o trabalhador -ou as equipes de trabalhadores- e o que está em questão são os resultados que se consegue extrair dos recursos disponíveis. Emboca-se com isso na ampla avenida do aumento da produtividade via aprendizado (learning). Alguns diriam que esse é o caminho das melhorias endógenas. Seja como for, o método contrasta com o perigoso (e, a curto prazo, tentador) caminho do aumento da produtividade cirurgicamente obtido: cortam-se trabalhadores, implantam-se equipamentos. Entre a terapia evolucionista e a cirúrgica, há um mundo de diferenças, de possibilidades e de implicações sociopolíticas.
O que acaba de ser apontado põe em evidência que a abertura inaugura uma temporada de escolhas estratégicas. O que está em questão não é o mero ganho, aqui e agora, das empresas. Elas estão redefinindo a sua identidade e, com ela, a própria forma pela qual pretendem, daqui por diante, proteger e expandir os seus lucros.
O que denominei de perspectiva cirúrgica pode ser válida para efeitos de sobrevivência. A elevação do grau de automação pode aliás ser desejável e até mesmo necessária. O problema, então, é de postura. Na perspectiva evolucionista uma premissa maior consiste em ganhos imediatos que impliquem a redução das chances de aprendizado, a deterioração das relações com os trabalhadores, ou o engessamento tecnológico, devem, em princípio, ser evitados.
O determinismo contrabandeado pela globalização absolutiza uma interpretação, equivocada, do contexto histórico. O quadro com que nos defrontamos revela-se, de fato, semeado de opções. Elas não podem contudo ser equiparadas a meras decisões de mercado. Em outras palavras, não são redutíveis a reações individuais e instantâneas diante de mudanças de preços.
Não é preciso sublinhar que para a sociedade e para a sustentabilidade do crescimento as implicações das diferentes opções e caminhos aqui apontados são profundamente diversas. Estamos decididamente diante de questões de interesse público.

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