São Paulo, quarta-feira, 23 de outubro de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Do racismo cordial ao racismo amedrontado

ROBERTO MELO

Em 1995, o Datafolha fez o mais completo levantamento sobre o preconceito de cor jamais realizado no Brasil. Durante seis meses, mais de 700 profissionais foram envolvidos num projeto ambicioso: descobrir se o brasileiro é racista e que tipo de racismo seria esse. Publicado em um caderno especial deste jornal em junho do ano passado e depois transformado em livro, o estudo provou que o brasileiro é racista, sim, só que esse racismo é "cordial". O resultado mais emblemático dessa "cordialidade" é o fosso existente entre os que consideram haver racismo (89% dos brasileiros) e os que admitem ser, eles próprios, racistas (10%).
Num país rigorosamente cego em números, a tarefa foi grandiosa. O livro em questão ("Racismo Cordial", editora Ática) foi particularmente útil e decisivo quando a direção da editora Símbolo me incumbiu de medir o público potencial da primeira revista de grande porte voltada para os negros, "Raça Brasil". A revista foi lançada em setembro, com uma venda em bancas inesperada para o mundo do marketing brasileiro, que sempre alimentou o dogma de que o negro brasileiro não tem orgulho da própria raça, e que, portanto, seria inútil fazer uma revista para eles.
Em minucioso levantamento, a pesquisa do Datafolha mostra a desigualdade social entre brancos e negros, fruto de séculos de escravidão e décadas de discriminação, além de desvendar sutilezas no comportamento preconceituoso brasileiro. Mas eu tinha um problema prático: estabelecer a tiragem inicial da revista. A solução foi ler aqueles mesmos números "às avessas": em vez de perguntar a quantidade de negros pobres, quis saber se já havia negros com poder aquisitivo suficiente para comprar supérfluos -revistas, por exemplo. A surpresa: cruzando dados demográficos de população e idade do IBGE, conclui que há 5,4 milhões de negros e mulatos adultos com renda familiar acima de 20 salários mínimos. É uma cifra gigantesca, pois, entre os brancos, esse número não passa de 7,1 milhões. Silenciosamente, os negros brasileiros chegaram à classe média e já ocupam alguns postos no topo da sociedade. Pode ser que ainda não comprem iates ou frequentem campos de golfe. Mas e daí? Aprendemos a ver o Brasil dividido entre brancos ricos e negros pobres, e o que surgiu foi muito diferente: um país composto por um oceano de pobreza "bicolor" (90% dos negros e 83% dos brancos têm renda familiar abaixo dos 20 salários mínimos) e uma ilhota de consumo também repartida.
Não se trata de comemorar o fim da desigualdade racial. Tudo o que "Racismo Cordial" detectou também é verdade. A "democracia racial brasileira" é uma falácia, a desigualdade existe, só que não mais tão profunda quanto era 20 ou 30 anos atrás.
Todas essas informações estavam em "Racismo Cordial", mas a descoberta de uma classe média negra numerosa e sólida escapou aos próprios analistas da pesquisa, que mantiveram seu olhar fixo na missão prioritária -desvendar o racismo entre nós. Escapou a todos, pois aprendemos a ser racistas, mesmo tentando não sê-lo. No dia em que eu, um branco, fui encarregado de quantificar o público leitor negro, tentei lembrar se havia negros fazendo compras em shopping centers. Minha memória disse que não. Na primeira oportunidade, fui conferir "in loco". Eles estavam lá! Nas praças de alimentação, nas lojas de roupas e discos, nos cinemas. Consumindo, como qualquer cidadão.
O fato de 200 mil exemplares se esgotarem em poucos dias, obrigando a uma reimpressão de mais 100 mil, mostrou que, além de poder de consumo, os negros brasileiros têm orgulho da raça ou, pelo menos, passaram a ter.
O que dizem os brancos sobre tudo isso? A primeira reação à notícia de que haveria uma revista de grande tiragem foi vaticinar seu fracasso, com base nos argumentos de sempre. Depois do lançamento, a última moda entre os racistas tem sido dizer que "Raça Brasil" é racista, pois se define como "a revista dos negros brasileiros" quando não há uma "revista dos brancos brasileiros". Ora, há cerca de 1.900 títulos em circulação no país. Exceção feita a poucas e corajosas publicações para negros, de tiragem e recursos modestos, as demais ignoram 59% da população. Quando surge uma que resolve prestar esse serviço, então esta é racista?
Essa atitude revela medo de saber que os negros estão paulatinamente ocupando espaço. Neo-racistas do Brasil, relaxem! Os negros querem apenas ser tratados como consumidores. Pedem produtos específicos para sua pele, seu cabelo, seu gosto e sua cultura. Querem se ver bem-sucedidos, viver com auto-estima. O racismo cordial, que aqui se instituiu como uma maneira quase "preguiçosa" de excluir, se converte em racismo amedrontado. Tomara que seja sua última face.

Texto Anterior: Uso de passaportes e dupla nacionalidade
Próximo Texto: Habitação; Decepção; Agricultura; Gafe; Outro debate
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.