São Paulo, quinta-feira, 24 de outubro de 1996
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Desvalorizem o real

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.

Alguns leitores amigos criticaram a estridência do artigo da semana passada. Ah, mas como fará um pobre economista subdesenvolvido para se fazer ouvir? Ainda mais quando defende teses extremamente minoritárias e fora de moda. Se ele se limita a usar argumentos racionais, estatísticas etc., poucos, muito poucos prestam alguma atenção.
Nelson Rodrigues sempre dizia que um subdesenvolvido não pode manter a sua dignidade sem o protesto. O sujeito tem que espernear e subir pelas paredes, como fizeram Maria Angélica Borges e João Bocchi, em artigo publicado ontem nesta página.
O normal seria que nós, paus-de-arara, estivéssemos sempre vociferando contra a iniquidade. Nada mais abjeto, nada mais revoltante que o subdesenvolvido conformado, disciplinado e enquadrado.
Em todo caso, desta vez o tom vai ser um pouco mais brando, ainda que o assunto justifique protestos irados e arrancos de cachorro atropelado. Vou tratar dos desequilíbrios externos provocados pela política econômica brasileira.
Nos últimos dias, vieram a público dados que confirmam a tendência de agravamento do problema. O resultado da balança comercial em setembro levou a que fossem revistas para cima as estimativas de déficit para 96.
Para 97, as projeções são ainda piores. Alguns bancos estrangeiros já calculam um déficit comercial de US$ 8 bilhões ou mais.
Naturalmente, essas previsões estão sujeitas a chuvas e trovoadas. De qualquer modo, vejamos o que significariam.
Não se deve perder de vista que o comércio de mercadorias é apenas parte do desequilíbrio externo brasileiro. Não é o déficit comercial, mas o déficit em conta corrente que precisa ser financiado com ingressos líquidos de capital externo ou perda de reservas do Banco Central.
O déficit em conta corrente inclui, além da balança comercial, a balança de serviços e transferências unilaterais (remessas de imigrantes e outras). A balança de serviços é dominada pelos pagamentos de juros da dívida externa.
Em 97, as despesas de juros devem ficar por volta de US$ 10 bilhões. As amortizações do principal devem chegar a US$ 18 bilhões, segundo o cronograma de vencimentos da dívida externa de médio e longo prazos. O serviço da dívida (juros + principal) se aproxima, portanto, dos US$ 30 bilhões.
Se a balança comercial acusar um déficit da ordem de US$ 8 bilhões, o desequilíbrio em conta corrente poderá ficar por volta de US$ 25 bilhões, o equivalente a algo como 50% das exportações, percentual que se aproxima dos registrados pela Argentina e até pelo México nos anos imediatamente anteriores à crise de dezembro de 94.
Como chegamos a isso? Não foi, vejam bem, por obra dos desígnios misteriosos da "globalização" ou por qualquer outra fatalidade macroeconômica. Trata-se, fundamentalmente, do resultado das decisões e omissões da política econômica brasileira, em especial no campo cambial.
Como notou em trabalho recente Sebastian Edwards, até há pouco economista-chefe do Banco Mundial, mas que agora voltou à universidade e pode falar com mais desenvoltura, "todas as medidas disponíveis da taxa real de câmbio para o Brasil indicam que houve uma intensa apreciação desde a inauguração do Plano Real".
Os ganhos de produtividade, observou, "não foram suficientes para compensar a apreciação da moeda".
Na verdade, o problema é mais grave. A apreciação posterior ao lançamento do real se sobrepôs a uma apreciação ocorrida em anos anteriores.
De acordo com dados da Cepal, entre 87 e 95, o Brasil acumulou, em relação a uma cesta de moedas, uma valorização real de nada menos que 55%, em função não apenas do Plano Real, mas também da política cambial do período 88-90.
Não é à toa que o desempenho das exportações brasileiras tem sido medíocre. A participação brasileira nas exportações mundiais vem caindo desde meados dos anos 80, de 1,4% em 85 para 1% em 93-94 e 0,9% em 95.
No acumulado até setembro de 96, o valor das exportações cresceu apenas 5% em comparação com janeiro-setembro de 95, indicando que a participação brasileira no total mundial voltará a cair.
Enquanto isso, as importações cresceram a taxas espetaculares, dobrando entre 93 e 95. O crescimento só não foi maior porque o governo vem promovendo, desde o ano passado, uma reversão parcial da política de abertura às importações.
Não é só na balança comercial que a política cambial provoca estragos. O déficit na balança de serviços também reflete a valorização do real.
Por exemplo: as despesas com turismo vêm crescendo a taxas explosivas, como ressaltou Luís Nassif em coluna recente.
Entre janeiro e setembro de 96, as despesas com viagens internacionais (turismo e outras) alcançaram US$ 2,5 bilhões, um aumento de 42% em relação a igual período de 95 e de nada menos que 251% em relação a igual período de 94.
Não é de espantar que isso esteja ocorrendo. O cambio artificialmente valorizado torna o Brasil relativamente caro para o turista estrangeiro, ao mesmo tempo em que barateia as viagens e compras no exterior para o turista brasileiro.
O economista Robert Lekachman comentou que às vezes é necessário gritar para chamar a atenção dos políticos.
Em 1928, quando Winston Churchill era ministro da Fazenda, Keynes escreveu a ele nos seguintes termos, a respeito de decisões relacionadas à implementação do padrão-ouro: "Prezado ministro da Fazenda, que legislação monetária imbecil o senhor introduziu!" Reparem que, às vezes, até os hiperdesenvolvidos têm que chutar o pau da barraca.
Alguém precisa chegar ao ministro Malan e dizer: "Caro ministro, que política cambial mais cretina a sua!"
Volto ao assunto na semana que vem.

E-mail: pnbjr@ibm.net

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