São Paulo, quinta-feira, 24 de outubro de 1996
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A morte inexorável, uma evidência recusada

MARIO SERGIO CORTELLA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Jacques Bossuet, o prelado e historiador francês do século 17, ficou famoso por suas orações fúnebres; em uma delas, enunciou uma intrigante constatação do óbvio: "Nos funerais, só se ouvem palavras de surpresa por aquele mortal estar morto".
Aquele mortal estar morto! Qual a fonte da surpresa? Não é a chegada da morte inexorável apenas uma questão de tempos e circunstâncias? Não estaria certo Fernando Pessoa ao sugerir que o humano é somente um cadáver adiado, mais do que o bípede implume platônico ou o animal racional aristotélico?
Teria Pessoa se inspirado no provérbio inglês que diz ser a morte uma sombra que sempre acompanha o corpo?
O filósofo romano Sêneca, contemporâneo do nascimento do cristianismo, afirmou, em uma de suas "Cartas a Lucílio", que "a hora final, quando cessamos de existir, não nos traz a morte; ela simplesmente completa o processo de morrer.
Nós alcançamos a morte naquele momento, mas já estávamos há muito tempo no caminho". Ora, se assim é, por que nossa recusa em aceitá-la?
Todos os seres vivos morrem; no entanto, é provável que o humano seja o único que sabe que vai morrer. Mesmo assim, a rejeição a esse fato natural é exuberante.
As crianças, antes de serem por nós adulteradas, têm por hábito mencionar a morte dizendo: "Quando eu morrer...", "quando você morrer..." etc.
São corrigidas rapidamente pelos adultos, de modo a substituírem o advérbio de tempo por uma conjunção condicional: "Se eu morrer", "se você morrer" etc., como se a alteração morfológica mudasse a substantividade do fenômeno e afastasse a ocorrência.
É claro que também se dá à morte um caráter positivo; é possível racionalizá-la supondo que a imortalidade seria insuportável, que morrer é descansar ou partir para uma situação melhor.
Simone de Beauvoir, por exemplo, discute o dilema existencial em seu romance "Os Mandarins" e nele escreve que "a morte parece-nos menos terrível quando estamos cansados".
O mesmo faz o poeta Rimbaud quando, nos seus deliciosos delírios pré-simbolistas, exclama: "Ó, morte misteriosa, ó, irmã de caridade!". É a "boa morte" (eutanásia) como desejo frequente.
Entretanto, a morte apavora a muitos (a todos?). Para alguns, temor do desconhecido; para outros, rejeição ao provisório.
O tremendo esforço das religiões para dar à morte uma lógica e a busca por integrá-la em um sentido mais unitário são acompanhados de perto pelas ciências em seu trabalho cotidiano de procurar retardá-la.
O mesmo ocorre nas artes, com suas expressões catárticas, quando intentam circunscrever a mortalidade nos parâmetros da imortalidade estética.
Talvez valesse a pena nos apegarmos aos ensinamentos de Epicuro, que, já no século 3 a.C., entendia não ter o humano nenhuma relação com a morte.
O ateniense, pregando a calma felicidade, disse não temer a morte porque nunca iria encontrá-la, pois "enquanto sou, a morte não é; e, desde que ela seja, não sou mais".
Consolo pueril ou convicção racional? Não importa; ajuda a exorcizar o terrível mistério.

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