São Paulo, quinta-feira, 24 de outubro de 1996
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Sem-terra e liberdade

Se o governo FHC se movimenta na questão da terra, infelizmente o faz ao ritmo dos massacres dos sem-terra
EMIR SADER
O Movimento dos Sem Terra é o responsável pela grande -senão a única- conquista democrática dos anos 90 no Brasil. Depois de ser marginalizado e discriminado durante década e meia, conseguiu descriminar a questão da terra no país.
Até recentemente, a foto com que se tentava defini-los -numa sociedade da imagem- era a de um sem-terra com uma foice na mão, numa praça central de Porto Alegre, acusado de ter decepado um PM. Independentemente de que aquelas acusações se revelaram falsas, foi somente muito tempo depois, quando, em outra foto, Diolinda era presa algemada, acusada de "formação de quadrilha" -no mesmo dia em que PC Farias era solto, depois de ter sido objeto da mesma acusação-, que a imagem real dos sem-terra começou a mudar.
Ficamos sabendo que 80% da população brasileira é a favor da reforma agrária, que 600 mil famílias estão assentadas e produzindo -com produtividade muito superior à média da agricultura brasileira-, que nos assentamentos não há criança fora da escola, que neles funciona uma rede de escolas de formação de técnicos em cooperativas, que há assentamentos funcionando há mais de dez anos. Ficamos sabendo que a grande maioria das vítimas da violência no campo são pessoas não organizadas, que, por isso mesmo, são mais facilmente assassinadas, e que, portanto, a organização é a forma de dar canais políticos e de mediação para a massa dos trabalhadores do campo.
Essa conquista que o Brasil deve aos sem-terra foi apoiada por algumas vozes -minoritárias- na imprensa, por alguns parlamentares, por certas entidades sindicais. No entanto, foi a ação dos sem-terra que consagrou o direito ao trabalho dos que querem trabalhar em terras improdutivas. Foram eles que conseguiram demonstrar que nem tudo que é legal é legítimo, dado que a Constituição atual -lembram-se?- representou uma regressão em relação ao direito de dispor de terras improdutivas para a reforma agrária, levada pela UDR, mas apoiada pela maioria dos parlamentares. São eles que tornam realidade o preceito constitucional do direito ao trabalho, com que instância governamental alguma se preocupa.
Quando lemos os colunistas econômicos da nossa grande imprensa, nos perguntamos de que país eles falam. Será que dentro de cada carro que anda com o plástico "Acredito em duendes" se esconde um economista do governo ou um dos que lhes fazem eco na imprensa cotidiana? Para Luís Nassif, por exemplo, na Folha (25/9), a "única maneira de romper com o arbítrio era contestando as leis", durante os anos 80. Pois é isso o que os sem-terra fazem em relação às leis vigentes. Dizer que "há uma opinião pública moderna, sensível aos reclamos dos oprimidos" é não conhecer como a busca desesperada de sobrevivência, em meio à perda ou à ameaça de perda dos empregos da maioria, e o consumismo, o narcisismo, o egoísmo dos que mais próximos estão dos mecanismos formadores de opinião levam, ao contrário, a uma falta de sensibilidade -especialmente por parte destes últimos- aos "reclamos dos oprimidos".
Se o governo FHC se movimenta na questão da terra, infelizmente o faz ao ritmo dos massacres dos sem-terra: primeiro, com a nomeação de Francisco Graziano para tratar do tema, depois do massacre de Rondônia. Em seguida, com a criação do Ministério da Reforma Agrária, depois do massacre de Corumbiara. Não são "as críticas sobre sua alegada pouca sensibilidade para com o social" que levam o governo FHC a agir, e sim a ação concreta dos sem-terra. E tampouco se vê, no mundo real, como "essas críticas vêm obrigando o governo a centrar fogo na área social, inclusive na questão da terra". Temo até que o "centrar fogo" possa ter outra acepção na questão da terra, quando o governo demonstra seu lado autoritário e pouco inteligente, ao suspender negociações com os sem-terra e até com os latifundiários -como o caso do Incra de São Paulo, no Pontal- e ameaçar constantemente o uso de forças militares. O caminho correto das negociações foi trilhado no Pontal, e o governo, tacanhamente, é o responsável -contra os sem-terra, os proprietários de terras, o ex-responsável pelo Incra e os próprios funcionários desse organismo- pela quebra das negociações, parecendo demonstrar que a ele interessam o enfrentamento e o retorno à estigmatização e à "paz rural" em que se assentaram os pactos de elite no Brasil.

Emir Sader, 53, é professor do Departamento de Sociologia da USP (Universidade de São Paulo) e autor de "Anjo Torto - Esquerda (e Direita) no Brasil" (Ed. Brasiliense, 1995), entre outros livros.

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