São Paulo, quinta-feira, 24 de outubro de 1996
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Política do impossível

OTAVIO FRIAS FILHO

No surto de loquacidade que acaba de atravessar, o presidente da República voltou a seu tema compulsivo, àquela que seria a sua forma particular de neurose: o mito de Fausto, o sujeito que troca, ao menos na versão de Marlowe, as agruras do conhecimento pela onipotência do mando, o livro pelo poder.
Você salva a sua alma, mas não muda as coisas, lembrou o presidente-sociólogo ao criticar a esterilidade de toda política baseada em bons sentimentos. O destino daquele que só vê objetivos-fim, sem considerar os objetivos-meio, seria frustrar todo mundo exceto ele próprio, que só tem olhos, no fundo, para si.
Trata-se de uma completa reviravolta ética, pois desse ponto de vista o sonhador é que é egoísta, o altruísta é que é vaidoso, o intransigente é o verdadeiro imoral. A política se torna "arte do necessário", expelindo tanto os que querem "menos" como os que querem "mais" para um mesmo campo imobilista.
Embora a crítica não se referisse a ele, o Brasil tem um profeta que pensa o oposto. Também sociólogo, Herbert de Souza, o Betinho, foi se convertendo num mito nacional, uma espécie de Tolstói mineiro, conforme ele reagia à doença entregando-se às causas da solidariedade, praticando a política do "impossível".
Seria interessante saber como Betinho responderia à crítica, mas não, ele certamente não tem nada de novo a dizer sobre o assunto, porque o seu testemunho é de atitude, não de palavra. O que fez da sua figura um símbolo foi justamente ignorar as mediações da política para tentar "fazer alguma coisa".
Mesmo um leigo em economia fica perplexo ao constatar a ignorância de Betinho sobre o assunto, sua ingenuidade "caipira" em face do que está acontecendo no mundo, sua tentativa de levar o cristianismo para dentro da política, ao risco de atualizar o ditado de que o inferno está cheio de boas intenções.
Entre o desperdício do shopping center e a miséria em torno de cada semáforo, Betinho não vê os descompassos, as articulações, o meandro complexo e invisível para onde o administrador consciencioso deve dirigir sua atenção. Tudo o que ele quer é aproximar as duas pontas do drama, de forma direta, já.
Mas se ele conhecesse economia não teria mobilizado, ainda que por um período fugaz, tantas esperanças e culpas, não teria sido a voz solitária no deserto, como Carlos Heitor Cony lembrou ontem que todo profeta é. O declínio das campanhas de Betinho mostrou o quanto todos os ventos sopram no sentido contrário.
A miséria da política é cada vez mais essa dificuldade de articular possível e "impossível", ideal e prática. Seria preciso não um, mas mil profetas, para nos mostrar as ilusões do pragmatismo, a irrealidade da administração, para escancarar, enfim, o que clama aos céus em cada esquina sem que enxerguemos nada.

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