São Paulo, domingo, 27 de outubro de 1996
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História e ambiente afogados

PAULO BERTRAN
ESPECIAL PARA A FOLHA

A Usina Hidrelétrica de Serra da Mesa, em Goiás, é o último dinossauro da ideologia do "Brasil Grande", que não é apenas a dos militares, mas também juscelinista, varguista etc. O passado desfalecido, morto-vivo, mas sempre arreganhando os dentes afiados.
Não consegui conciliar opiniões a respeito. Segundo algumas fontes, o lago da usina é o segundo espelho d'água das Américas e o primeiro em volume. Segundo outros, é o quarto em superfície e um dos primeiros do mundo em volume de líquido.
Enquanto isso não se resolve, sob o critério de geração de energia (1.293 gigawatts) é uma hidrelétrica entre média e grande, desproporcional à sua área inundada nos profundos vales formadores do rio Tocantins.
Pensada há 40 anos e começada há 10, custa perto de US$ 2 bilhões e está defasada em tecnologia, que hoje privilegia pequenos aproveitamentos hidrelétricos, menos danosos ao meio ambiente.
História
O município mais inundado é o de Niquelândia -compósito de níquel mais "land" (terra em inglês), a terra do níquel. E, de fato, há ali uma das maiores jazidas de níquel do planeta, explorada pela Votorantim e outra empresa menor, estrangeira.
Nos tempos coloniais, chamava-se São José do Tocantins, inocente vilarejo com duas igrejas decadentes, uma das quais reputava ter o mais belo altar de Goiás.
A região foi colonizada no século 18 por imigrantes portugueses transformados em mineradores de ouro. As lavras renderam, esplendorosamente, por meio século. Com sua exaustão, a economia ruralizou-se por longos anos, em nível de subsistência, até adquirir neste século certa importância pastoral, de gado criado à larga.
Em 1820, passou pela região o doutor Johann Emanuel Pohl, médico e naturalista austríaco que deixou um relato pormenorizado -e que eu tentava seguir tanto quanto possível, 176 anos depois.
A poucos quilômetros de Niquelândia existiu o outrora populoso arraial de Traíras, sede administrativa de um grande território -e que hoje, com o nome mudado para um detestável Tupiracaba, persiste miseravelmente como distrito de Niquelândia.
Todo o município de Niquelândia está repleto de ruínas de povoados que não sobreviveram ao século atual: Maranhão, Água Quente, Cocal, Cachoeira, Santa Rita, todos eles em territórios sabidamente auríferos.
Desses, as ruínas de Santa Rita (e talvez as de Cachoeira) devem ser inundadas pela hidrelétrica de Serra da Mesa. Ao sul, o lago a formar-se tangencia o povoado de Muquém, famoso pela romaria de Nossa Senhora da Abadia, particular devoção dos goianos.
Luzes frias
Estava nesse estado basbaque de contemplação do inevitável, quando encontrei-me com meu amigo professor Fleury da Silveira, engenheiro elétrico, que matou-me as indagações pela metade.
Não. O problema energético brasileiro não é o de gerar mais hidrelétricas, para gerar não sei quantos mil gigawatts para o século 21, argumento usado pelo setor energético, com apoio das grandes empreiteiras, para evitar um gigantesco blecaute nos próximos anos.
O problema todo -que não é só brasileiro, mas planetário- reside na manutenção de padrões de consumo energético antiquados.
Diante da tecnologia das luzes frias -neons à frente-, o consumo de uma lâmpada residencial normal de 60 watts pode cair para 10 watts. Um gerador industrial moderno também pode ser 50% mais econômico do que os atuais.
Mas, se as coisas forem pensadas desse ângulo, quantos confortáveis salários em Furnas e em outras hidrelétricas (sem falar nos empreiteiros) serão incinerados? Pensando bem, privatizado ou não, o setor energético não deve ter o menor interesse em poupar energia. Prefere esses incômodos horários de verão em vez de incentivar a iluminação fria, no fim incomparavelmente mais barata.
Se para mim cai o mito das urgências energéticas, para eles, não, beneficiários que são desse apocalipse, algoz e vítima de sua própria lógica de expansão.
Mosquitos e árvores podres
Danos ambientais? O lago de Serra da Mesa levará perto de dois anos para encher. Quarenta e tantos quilômetros do leito do Tocantins secarão. Espera-se aí a entrada de 10 mil garimpeiros na área sabidamente aurífera das antigas minas de São Félix. Nesse período, à jusante, já em território do Estado de Tocantins, as águas do grande rio devem reduzir-se pela metade, aniquilando o pouco que restava da economia ribeirinha.
A montagem da barragem deve formar-se em um lago de aspecto tentacular, pontilhado de ilhas. Como a biomassa não foi retirada, deve fermentar, gerando miríades de insetos e risco de epidemias.
Estive lá há poucos dias com amigos de Brasília e de Goiânia -e com o livro do doutor Pohl debaixo do braço. Abrimos uma página na Internet: "Um Último Olhar sobre a Serra da Mesa". A comporta ia ser fechada, mas um bravo juiz de Tocantins mandou sustar o evento para estudar melhor o impacto ambiental.
Expedição "high tech": jipes Nissan, GPS, computador, celulares, cartografia abundante. Mas o idílio rompeu-se à visita das obras: escala inumana, devastações enormes, dinossauros em ação. A seis quilômetros do canteiro ouvia-se o surdo rosnar das máquinas de Serra da Mesa.
O que pensaria o doutor Pohl, com sua singela expedição, aos olhares de 1820. Fascínio e horror?
É possível que em outras eras geológicas tudo aquilo possa ter sido um lago, ou fundo de mar, ou deserto. As mudanças geológicas, porém, processaram-se na escala de até milhões de anos, permitindo o ajuste harmônico da natureza, da flora, da fauna...
O que o homem fez nos últimos séculos extrapola, porém, as escalas conhecidas. Teriam os monstros jurássicos, nos 100 milhões de anos que existiram, alterado e consumido tanto o ambiente?
Provavelmente não. O homem, com suas mágicas letais, destruiu a natureza, criou sua própria natureza ecoantrópica e disparou uma máquina irrefreável.
Vivemos a era do aprendiz de feiticeiro. A era de Serra da Mesa.

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