São Paulo, domingo, 27 de outubro de 1996
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O perpétuo adiar do presente

ARTHUR NESTROVSKI
ESPECIAL PARA A FOLHA

O teatro inteiro fica às escuras e a cortina do palco se abre. Um único spot se acende, iluminando o pódio. A platéia irrompe em aplausos, e você agradece. Neste ponto, uma voz gravada, em tons vigorosos, formula a primeira pergunta. E você tem a sensação de que nada disto está acontecendo, de que seu lugar não é ali e não tem a menor idéia do que responder. E então responde.
Momentos como esse se repetem, inúmeras vezes, ao longo do novo romance de Kazuo Ishiguro -o primeiro desde "Os Vestígios do Dia" (1989). Desespero e decoro colorem, em doses desiguais, a passagem do grande pianista Ryder por uma pequena cidade germânica, onde deve supostamente dar um concerto. Que Ryder (o narrador incansável deste longo livro sobre o cansaço) não tenha noção precisa do que deve tocar, nem muito menos de outros compromissos que aparentemente lhe cabem e cujas consequências serão decisivas para o futuro da comunidade; que encontros e reencontros e reconhecimentos vão-se sucedendo descontrolada, mas naturalmente; que a sua presença seja esperada por todos, assim como a de todos é inesperada, mas compreensível para ele: tudo isto faz parte do cenário de fantasmagoria deste romance estranho, equilibrado no limite vulnerável do sonho. Que o narrador faça o que pode para se convencer de que não está sonhando é, talvez, o que lhe deixa ainda mais vulnerável; não fora o fato de que, ao que tudo indica, essas coisas não aconteceram mesmo, ou pelo menos não como narradas -mas também não foram só um sonho.
"Não cheguei a dormir por muito tempo e o telefone já tocava no meu ouvido." Ninguém consegue dormir por muito tempo neste romance noturno, que mantém sempre tudo em suspenso, como uma sequência sem fim de cadências musicais não resolvidas. A menção à música, aliás, não é casual: boa parte do que o livro tem de humor vem das referências à "necessidade imperativa" de Ryder de defender a causa da música contemporânea, com direito a descrições de ensaios e discussões da obra de meia dúzia de compositores fictícios. Nisto, como em tudo o mais, Ishiguro é um mestre do irrealismo, um artista preciso de ritmos e tons, o solista excepcional de sua própria composição.
Ninguém, na verdade, jamais consegue estudar ou escutar coisa alguma, ao longo dessas 489 páginas de movimentos interrompidos, planos abortados, afastamentos, sumiços e alguns raros momentos de entendimento. Mas aqui, de maneira tão mais irônica porque quase literal, a música é uma imagem do que está no centro inalcançável de tantas palavras e tantos esforços. A música é ainda a imagem de controle total de Ryder sobre o seu mundo, em contraponto inconciliável com o descontrole vivido. E ilustrativamente, na história do aluno de piano Stephan, um dos tantos duplos de Ryder -que às vezes parece ser todos, às vezes nenhum- a música serve também para dramatizar um dos temas principais de Ishiguro: o cruzamento de frustrações entre pais e filhos, trabalhado com uma delicadeza quase cruel, a atenção e o espanto de quem prefere não compreender por que tudo tem de ser como é.
A pressão do afeto é de uma força tremenda, mas subterrânea, nesta narrativa que faz o que pode, como Ryder, para se desviar de onde quer chegar. Alguma coisa do tom impessoal, mas característico do autor, pode ser explicada, quem sabe, por isso. Entre a censura ao que ele mesmo tem de inaceitável e a fuga constante deste reconhecimento, o narrador suspende suas palavras, numa aparente calma que faz lembrar a voz da mãe japonesa Etsuko, no menos conhecido e talvez, até hoje, o melhor dos romances de Ishiguro, "Uma Pálida Visão dos Montes" (1982). Mas a atração do reprimido confere um peso inalienável a todas as coisas, e a dificuldade de Ryder é escapar das distrações e falsas responsabilidades que vão transformando sua vida num redemoinho de irrelevâncias urgentes, enquanto tudo o que conta está ao alcance de um gesto simples impossível, ou uma palavra impronunciada.
Fantasmas ou vozes
As relações comovedoramente difíceis dele com Sophie (sua mulher ou ex-mulher) e com o menino Boris (seu filho, ou só dela, talvez, cujo afeto Ryder parece fadado a trair); as relações não menos difíceis entre Sophie e seu pai, o porteiro Gustav (paródia melhorada do Stevens de "Os Vestígios do Dia"); ou entre o maestro alcoólatra Brodsky, espécie de eminência parda do romance, e sua antiga mulher de 20 anos atrás: esses duetos vão-se desdobrando em outros, como o do gerente do hotel com a mulher cuja vida ele estragou e cujas ambições frustradas engrossam agora a conta devedora do filho pianista; ou as do próprio Ryder com seus pais, aguardados ansiosamente por ele para este concerto e que nunca chegam, mas passaram pela cidade no passado, o que para Ryder já é alguma coisa. Cada um desses pares vai sendo revelado, aos poucos, nas conversas de Ryder com a multidão de desconhecidos familiares, de fantasmas ou vozes que vão cruzando seu caminho e obedecendo à compulsão de lhe contar sua vida.
Sobre esses diálogos todos, sobre as exigências que Ryder deve aparentemente atender, sobre os compromissos que ele não se lembra de ter assumido, mas acata agora sem discussão, sobre tudo isto paira um véu de entendimento, que é sempre o dos outros, não dele, como se tudo afinal estivesse muito bem planejado, de acordo com alguma regra inapreensível. De modo complementar, é frequente a constatação, em retrospecto, de que tudo o que foi narrado não aconteceu assim, muito antes pelo contrário -e cada um de nós está sempre pronto a aceitar, como Ryder, a outra versão.
Isto confere ao romance uma tonalidade particular, como se nada do que se está lendo fosse de fato o narrado; embora não haja outra forma de narrar. O que se lê é um outro romance, por trás deste, que as palavras não são capazes de literalizar. As palavras, desconsoladas, não se livram nunca de um certo desapego -aquela "bela indiferença" de que falava o dr. Charcot, diagnosticando a histeria, traduzida aqui em figura de conhecimento, para a literatura do fim do discurso dos afetos.
O efeito é ainda mais insólito porque, se de um lado a prosa de Ishiguro resiste sistematicamente ao espetáculo, de outro ela é o veículo de uma boa dose de horrores, desde mutilações e morte até as humilhações de amantes, amigos e filhos e as angústias da vida em família -como nessa pequena vinheta, uma memória dentro de outra memória do narrador: "Percebi que, para essa senhora idosa, meus pais e eu representávamos o ideal da felicidade familiar. Essa compreensão foi seguida por uma enorme tensão... Não que eu receasse que meus pais não conseguissem manter aquela imagem... Mas eu tinha me convencido de que, a qualquer instante, algum sinal faria com que a velha senhora se desse conta do enorme erro que cometera"; ou na visão mal-lembrada do pai saindo de casa, "depois que os tumultos haviam explodido em casa".
A prosa tranquila do narrador encobre tudo como um outro manto, sobreposto aos da memória e do deslocamento. É ela, também, que permite ao autor a façanha de um livro tão discreto, mas tão corajosamente exposto ao sentimento.
"Volto assim que puder" é o refrão que ressoa do início ao fim, à medida que Ryder vai sendo levado de um compromisso a outro, sem levar nenhum a cabo. Parece disposto "a reconhecer uma enorme culpa, ao mesmo tempo que se pergunta o que mais poderia ter feito", como escreveu Michael Wood, numa resenha elogiosa ("The New York Review of Books", 21/12/95). Seu tortuoso adágio -e o tempo dessa prosa está decididamente nas primeiras dezenas do metrônomo- soa como uma longa viagem noite adentro, em direção não tanto ao passado, mas a um presente perpetuamente adiado, ou fora de alcance. Tempo e espaço se expandem ou contraem de acordo com uma outra física, ou uma outra música. Os mecanismos da contingência vão carregando o narrador sempre para outro lugar e ainda outro, abandonando quem não queria, em favor de alguma coisa que não quer. É um teatro íntimo, nebuloso, em que culpa e linguagem vão se entretramando virtualmente a despeito de nós, e quanto mais se fala, mais há culpa, e quanto mais culpa, mais se fala.
As montanhas e vales do sonho são tão perigosos para a ficção quanto são perigosos os abismos da psicanálise para a crítica literária. As presenças fantasmagóricas de Kafka e do Joyce noturno de "Finnegans Wake" -um e outro modulados, como se diz em música, para uma outra tonalidade- também não tornam mais fácil o trabalho da interpretação, que precisaria dar conta dessa retórica não-pessoal, não-poética, não-lírica, não-elegíaca, não-hermenêutica e não-celebratória da ficção contemporânea. Precisaria dar conta, ainda, das cotas de afeto no discurso das mulheres -Sophie, a mulher do gerente, a ex-mulher de Brodsky, uma antiga conhecida de Ryder-, que vão, uma a uma, livrando-se desses homens, para colonizar, sabe-se lá como, os domínios novos da compreensão.
Tem razão Ricardo Goldenberg de apontar (num ensaio inédito) um possível erro de tradução no título, que no inglês tende ao plural: "Os Desconsolados". São muitos, mesmo, para não dizer somos muitos os desconsolados duplos do pianista Ryder, "esperando o momento certo (que) mudará tudo", como diz a mulher do gerente, "um momento mínimo, contanto que seja o correto". O cenário de reparação afetiva no romance jamais permite grandes esperanças, e o final, em particular, sugere a repetição de outros tantos concertos, igualmente despropositados e inevitáveis para o grande artista, cujo retrato quando jovem é o de um filho insuficiente, e o retrato quando velho é o de um alcoólatra que jogou fora a música e o coração.
O retrato agora é o de um homem no meio do caminho, que talvez seja o retrato, também, em palavras simples, de uma literatura complexa, no meio do caminho: "Esse homem, de vez em quando, relembra a vida que levou e se pergunta se não deixou, quem sabe, escapar algumas coisas. Ele se pergunta como teria sido se -se tivesse sido menos tímido. Um pouco menos tímido e um pouco mais apaixonado".
Um pouco menos tímido e um pouco mais apaixonado: não é pedir demais, mas está no limite do impossível para Ryder, Brodsky e os outros, e está no limite do inenarrável, para essa literatura no fim do discurso dos afetos.

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