São Paulo, domingo, 27 de outubro de 1996
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A consagração do simulacro

PAULO SÉRGIO PINHEIRO

A cidade de São Paulo inundada votou no dia 3 de outubro. Pela quinta vez este ano, o rio Tietê transbordou para as marginais. Durante quatro anos, ocupadíssimo com suas obras virtuais, o prefeito Paulo Maluf não conseguiu cuidar a contento das galerias pluviais da cidade.
E, no entanto, o prefeito emergiu das águas podendo ostentar a quase vitória de seu artefato. O antigo "accountant" (contador) da firma da família de Maluf, como informou a revista "The Economist", aliás, é tão boa cópia que logo depois dos resultados já havia perdido a doçura e assumido nas entrevistas a truculência da fada madrinha. Como explicar essa contrafação, essa manipulação crassa, como entender que eleitores pobres e encharcados irrompessem das águas excitadíssimos para sufragar Pitta?
Esse é o resultado de um formidável processo, que apenas começamos a entrever, de modernização do populismo de direita. Depois de operações plásticas, alteração de voz, tintura adequada nos cabelos, correção de postura, lentes de contato, o estágio superior do malufismo implicou transformar os eleitores em meros consumidores políticos. Com milhões de dólares, promoveram-se vestibular de candidato e pesquisas qualitativas de opinião, contratou-se consultoria externa e, no final, em campanha de publicidade, foi construído Pitta. Fazendo com que os eleitores votassem não num candidato a prefeito, mas em quem melhor poderia encarnar o espírito da essência do malufismo. É a consagração do simulacro.
Chafurdados na repetição à exaustão do clichê do "bom prefeito que faz o sucessor", não nos demos ainda conta de que essa operação sinaliza o esvaziamento de qualquer conteúdo de programa político. O eleitor vota como compra um xampu: o candidato será escolhido pela qualidade dos "jingles" e da animação visual. É a anulação do espírito cívico que animou as revoluções do século 18 nos EUA e na França, que inspirou movimentos nativistas nos séculos 18 e 19 no Brasil, até às Diretas Já lançadas por Franco Montoro. É esse "public spirit" que preside a consolidação das grandes sociedades democráticas.
Pitta não é um biônico. É algo bem mais sinistro, porque, nos casos de Robocop, do monstro do barão Frankenstein e similares, trata-se de reconstrução a partir de componentes verdadeiros. O artefato malufista é mais perfeito, porque elaborado do nada.
Esse fenômeno, longe de ser original, está presente hoje em todas as campanhas políticas nas grandes democracias, como nos EUA. Mas qualquer político norte-americano morreria de vergonha de ostentar como protagonista o responsável pela campanha publicitária; aqui, o barão Frankenstein de última geração, contratado, virou ator político. No programa final (aquela canja concedida pelo TRE, depois do fim do horário eleitoral gratuito), Pitta salta da tela como o explorador na "Rosa Púrpura do Cairo" e assume-se como personagem, desvenda-se, apresenta e cumprimenta todos os artífices, expõe os andaimes que o haviam sustentado durante a campanha.
A publicidade virtual -com os ícones "Fura-Fila", Cingapura, túneis (pelos quais a esmagadora maioria dos eleitores das zonas leste e sul jamais vai passar, pois não tem carro)- é tanto mais surpreendente por ter conseguido dissimular proezas que demoliram outros políticos, de Spiro Agnew a Collor. Sob a varinha de condão-propaganda política transfiguram-se magicamente o autoritarismo na ditadura, o "estupra, mas não mata", as falcatruas Pau Brasil, o desvio das verbas sociais (como mostrou a Folha) para a folia de obras-vitrine, delícia das empreiteiras.
No segundo turno das eleições de São Paulo, os eleitores não estarão diante de dois "programas sociais" para a esmagadora maioria de eleitores pobres e miseráveis, mas perante opção entre a irracionalidade na política e a possibilidade da refundação do espírito público. Para os que acreditam nos valores da civilidade e dos direitos humanos, como horizonte necessário para a democracia, é imperativo escolher.

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