São Paulo, segunda-feira, 28 de outubro de 1996
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Os índios e nós

DARCY RIBEIRO

Uma das maiores alegrias que tive ultimamente foi ver pela TV meus irmãos xavantes, pintados de urucum e jenipapo, invadirem a Funai. Deixaram claro para o governo que entram em guerra se fecharem ou desmantelarem a Funai. Ela não presta, não. Mas, com ela, os índios sabem tratar. Sem ela, será pior, porque ninguém está pensando em criar uma burocracia mais favorecedora dos índios.
A última vez que vi os xavantes em pé de guerra foi porque eles descobriram que um ex-funcionário da Funai tinha mudado o nome de um rio para permitir que fazendeiros se apropriassem de 300 mil hectares de suas terras.
O Conselho de Segurança Nacional se reuniu para decidir se aceitava a guerra e liquidava com os índios ou se corrigia o nome do rio. Corrigiram, felizmente. Os xavantes iam mesmo sair em guerra, numa matança de todos os que estavam se instalando em seu território.
Coisa semelhante ocorrerá qualquer dia na área xavante grilada por uma empresa italiana. A opinião pública daquele país obrigou a empresa a devolver a terra aos índios, mas aí entrou a chicana municipal e estadual, promovendo a invasão daquelas terras, porque acham que os índios não as merecem.
Temos uma antropóloga no governo, d. Ruth, mas ela não manda no marido. Quem manda no Fernando são tecnocratas que não têm mente de brasileiros, nem têm qualquer sentimento de responsabilidade social. Vale dizer que qualquer alteração oriunda desses tecnocratas será para pior.
Os índios, no começo, eram 6 milhões. Hoje, pouco passam de 300 mil. Nós comemos os outros. Os antropófagos, hoje, somos nós.
Esse remanescentes tiveram o valor de atravessar 500 anos, vencendo as guerras de extermínio, a contaminação das pestes européias, a escravização. Inclusive o roubo de seus filhos e de suas mulheres, pois foi com elas, principalmente, que se construiu o povo brasileiro. Enfrentaram, também, duas outras desgraças que foram a ação etnocida de missionários e o paternalismo dos burocratas.
Eles aí estão, a nos dizer, desde sempre: só queremos um pedaço da muita terra que tínhamos, porque a necessitamos para sobreviver. Queremos, também, o direito de continuarmos sendo nós mesmos, sem qualquer opressão europeizadora, cristianizadora ou civilizatória.
Nossos índios não só sobrevivem, mas estão aumentando discretamente sua população graças a dois fatores: o apoio das populações urbanas brasileiras, inclusive da imprensa, que exige respeito para esses nossos ancestrais viventes e, sobretudo, o apoio cada vez mais clamoroso da opinião pública internacional.
O homem branco, afinal conscientizado de que sua expansão importou no extermínio de milhares de povos, pela destruição de seus sistemas de adaptação ecológica, deseja hoje contribuir para salvaguardar o que é possível salvar, ainda, de uma humanidade diversificada.

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