São Paulo, domingo, 3 de novembro de 1996
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Lampreia achou o futuro do trabalhador no passado

ELIO GASPARI

Começa no próximo sábado em Cingapura, a primeira reunião de nível ministerial da Organização Mundial do Comércio. Juntará perto de 3.000 pessoas, representando 120 países. Se ninguém cuidar, o Brasil vai dar vexame. Pelo seguinte:
Entre os muitos temas da agenda há um que em diplomatês vem sendo chamado de "cláusula social", "padrões trabalhistas" em sindicalês e "dumping social" em economês. Refere-se à queixa de algumas nações desenvolvidas que se consideram vítimas de concorrência desleal quando pagam um determinado preço pela mão-de-obra em seu país e são obrigadas a competir com produtos idênticos, fabricados em mercados onde a mão-de-obra é tratada de forma iníqua e as mercadorias saem por um décimo do preço. Esses países querem que a OMC defina padrões razoáveis de competição e defendem a criação de barreiras às exportações de produtos fabricados por mão-de-obra quase servil. Por enquanto não se trata de discutir os salários e as leis trabalhistas que amparam operários com registros profissionais, mas de criar barreiras à exportação de coisas feitas por crianças ou, no exemplo extremo, por mão-de-obra presidiária.
O diretor-geral da OMC, Renato Ruggiero, já disse que não se deve dramatizar as questões comerciais e reconheceu que os padrões trabalhistas serão o tema mais controvertido da reunião. Tratando-se de um tema antigo e sabendo-se que um país desenvolvido como os Estados Unidos não manda fiscais a Volta Redonda nem às fazendas de Bebedouro antes de sobretaxar o aço e o suco de laranja brasileiros, o caso está mais para filosófico do que para mercadológico.
Pois o chanceler Luis Felipe Lampreia, reunido com empresários na Confederação Nacional das Industrias, informa:
-a adoção dessas normas contraria os interesses do próprio trabalhador brasileiro.
Já se disse de tudo contra a cláusula social, mas essa é forte.
No campo prático, pode-se lembrar que a indústria de confecções dos Estados Unidos depende de trabalhadores submetidos a regimes iníquos de trabalho. Uma tailandesa clandestina trabalhando na Califórnia, fazendo jornadas de oito horas, ganhava US$ 144 por mês, menos, portanto, que uma doméstica em Brasília. Foi o próprio secretário do Trabalho dos Estados Unidos, Robert Reich, quem chamou esse caso de "escravidão".
No campo teórico o professor Paul Krugman, da Universidade de Stanford, já demonstrou que avanços de produtividade no Terceiro Mundo corresponderão a aumentos de salários no Terceiro Mundo, e não a rendas menores no Primeiro.
Além disso, é a mão-de-obra quase servil da China quem mais toma mercados aos bens de consumo brasileiros.
A idéia de que cláusulas sociais ofendem os interesses dos trabalhador não é séria nem nova. Não é séria porque o governo que o emprega tenta -sem grande sucesso- acabar com o trabalho infantil e com os contratos de serviços semi-servis (ainda que tenha um fraco pelo trabalho clandestino, que chama de "informal", referindo-se talvez a trabalhadores que ficam de cuecas nas fábricas.)
O que há de pior na idéia de Lampreia é sua velhice. Bem que o professor Fernando Henrique Cardoso poderia presenteá-lo com dois dedos de prosa sobre o trabalho de seu mestre Albert Hirschman (de Princeton) em torno de 200 anos de retórica reacionária. Hirschman mostra que a fala do atraso sustenta que as mudanças sociais são um risco para seus supostos beneficiários. Em troca, Lampreia pode contar ao professor Cardoso algumas boas histórias da globalização do golfe. Tanto do gramado escocês que visitou no ano passado, quanto dos buracos do Buzios Golf Club, que visitou em julho: "Ele está no nível dos mais bem preparados do mundo e é um dos melhores em que eu já joguei".
Assim como já há bons campos de golfe no Brasil, sempre houve um pensamento reacionário e audacioso em Pindorama, no nível dos mais bem preparados do mundo.
Em 1871 se dicutia a Lei do Ventre Livre, pela qual os filhos de escravas ficariam em poder do senhor até os oito anos. Se o Estado os indenizasse, eram libertados. Do contrário trabalhariam de graça até os 21. A imprensa escravagista dizia que essa lei prejudicava as crianças e a denominava "Lei de Herodes".
Fulanizando, o Visconde de Sinimbu argumentava que "a escravidão é conveniente, mesmo em bem do escravo". Já o deputado Andrade Figueira dizia que ela prejudicava os negros, pois "o escravo é, entre nós, um fidalgo proletário". Diziam que a Abolição era apenas uma jogada comercial dos ingleses.

Jatene na reta
O ministro da Saúde, Adib Jatene, terminou a semana decidido a pedir demissão amanhã ao presidente Fernando Henrique Cardoso. FH acordará disposto a aceitá-la.

PetroNada
O governo quer investimentos, privatização e transparência. Ótimo. Então, por que a Petrobrás está sentada em cima de uma proposta da empresa americana Gas Transmission & Storage (US$ 4 bilhões de faturamento anuais), que lhe oferece um projeto de aproveitamento da gás da província petrolífera de Urucum, na Amazônia?
Urucum fica na margem direita do rio Amazonas. Como o seu petróleo sai da terra junto com gás, só estão tirando uns 20 mil barris por dia, quando se poderia tirar três vezes mais. A reserva de gás está estimada em 50 milhões de metros cúbicos, coisa capaz de abastecer qualquer das grandes cidades brasileiras por pelo menos 20 anos.
Enquanto o gás está preso em Urucum, o interior do Amazonas consome energia térmica queimando óleo. Manaus, onde se concentra a atividade econômica da região, depende em 40% dessa dispendiosa energia térmica.
Se a proposta dos americanos, que envolve um investimento de US$ 600 milhões, é fria, basta que a Petrobrás os mande passear.
Se não é, vale a pena tratá-los a sério, porque, em matéria de gás e de energia para o Amazonas, circulam grandes idéias e grandes negócios. Uma é o gasoduto boliviano, indo até São Paulo. Até agora não apareceu empresa privada que se queira meter nele e o projeto dos fornecedores vem descendo goela abaixo da Petrobrás. Outra é a compra de energia venezuelana. Nos dois casos, se tudo der certo, o Brasil fica com suas fontes de energia fora de suas fronteiras.

Vale tudo na Vale
A reeleição já fez o primeiro estrago na filosofia privatizante de FFHH. A venda da Companhia Vale do Rio Doce foi tirada da agenda. O ministro Antonio Kandir disse que ela seria vendida ainda este ano. Falou-se em fevereiro, mas é difícil que o carro ande antes de março, se andar.

O Brasil visto de dentro da floresta
Está nas livrarias "A Ferro e a Fogo -A História e a Devastação da Mata Atlântica Brasileira". É um grande livro, talvez o melhor do ano. Foi escrito pelo professor americano Warren Dean, que nos anos 70 recontou a história da industrialização de São Paulo e nos 80 desmistificou a crise da borracha como produto da cobiça imperial das nações desenvolvidas. Dean morreu há dois anos, em Santiago do Chile, envenenado por um escapamentode gás.
É um trabalho zangado, quase triste, sem concessões ao anedótico. Pelo assunto e pelo estilo, lê-lo não traz prazer, mas é uma verdadeira dádiva intelectual. A história de Dean foi escrita em círculos. Pela história da floresta ele contou a história da terra. Pela da terra, a do Brasil. Pelas três, a de uma profecia que serve de epígrafe ao livro: "Quem vier depois que se arranje".
Narrativa da destruição de uma floresta que caiu nas mãos de uma elite ignorante, incapaz de perceber interesses coletivos e duradouros (mesmo os seus), "A Ferro e Fogo..." mostra a extensão daquilo que um governador de São Paulo, já no século 18, chamava de "engodo da mata virgem". No século 16, exportava-se pau-brasil em toras, não em tintura, o que seria muito mais lucrativo. Queimava-se a mata mas se comprava potassa na Europa, mesmo sabendo-se que ela era um derivado das cinzas. No século 17, Portugal importava índigo (o corante azul que hoje tomou conta do mundo com os jeans) mesmo sabendo-se que a sua planta era conhecida dos índios. No 19, José Bonifácio mandava arrancar os papos dos tucanos do museu de história natural para enfeitar o manto de D. Pedro 1º. A nobreza do seu tempo importava mogno da Jamaica e se surpreendia ao ver que os europeus valorizavam o jacarandá. Charles Darwin, que passou algumas semanas no Rio de Janeiro, surpreendeu-se ao ver que um dos seus anfitriões mandou derrubar uma árvore para retirar de um de seus galhos um macaquinho que acabara de caçar. Segundo um viajante inglês, era uma elite que "não conhece os desfrutes que fazem a vida desejável".
Na metade do século 20, a lenha e o carvão vegetal representavam 79% de toda a energia consumida no Brasil. Em 1992, só na região Sudeste da Mata Atlântica, 269 hidrelétricas inundavam uma área equivalente à metade do Estado do Rio de Janeiro. Um terço delas estavam desativado.
Aquilo que hoje pode parecer asneira era produto de uma monocultura destinada a preservar o poder dos fortes, de fazendeiros que recebiam lotes de 40 km2 do Estado (as sesmarias) e, quando os esgotavam, reivindicavam outro. Nessa grande devastação, Dean achou personagens heróicos, como conservacionista Augusto Ruschi, no Espírito Santo, defendendo a floresta, estudando os colibris e colecionando orquídeas. Seu carinho pelas organizações ambientalistas é contido, mas é difícil que alguém leia seu livro e seja capaz de voltar a debochar das ONGs ecológicas.
Graças a esse livro se pode saber que neste ano comemoram-se 200 anos da revogação da lei que exigia a demarcação de todas as sesmarias existentes e futuras. O presidente Fernando Henrique Cardoso ainda tem dois meses para comemorar o Bicentenário da Desorganização Fundiária. Desfilam decretos que não são cumpridos e reservas florestais que minguam. (O Parque da Serra da Bocaína, na Serra do Mar, nasceu em 1971, com 1.340 km2. No final dos anos 80, tinha 55 km2.)
Quem não quiser ler o livro todo deve pelo menos praticar o exercício de ir da página 293 à 297. Conta a história de uma reserva de 3.000 km2 criada em 1942, reduzida à metade quatro anos depois e finalmente dissolvida nos anos 60. O governador que a desmembrou e dissolveu nela pegou terras para um irmão e um filho. As terras foram griladas, a mata derrubada e as pastagens ficaram sob a proteção de pistoleiros. O governador chamava-se Adhemar de Barros ("rouba, mas faz") e a reserva situava-se no Pontal do Paranapanema, onde ainda há gente acreditando que o movimento dos sem-terra é uma diabólica ameaça ao sacrossanto instituto da propriedade privada.
Sem cometer um só momento de romantismo ecológico, Dean termina seu livro (muito bem traduzido por Cid Knipel Moreira) com os pés na floresta destruída e os olhos na Amazônia:
- O último serviço que a Mata Atlântica pode prestar, de modo trágico e desesperado, é demonstrar todas as terríveis consequências da destruição de seu imenso vizinho.

ENTREVISTA
Hildebrando Alves
(48 anos, pai do Dinho, dos Mamonas Assassinas, morto no desastre que matou toda a banda, em março)
O que é que uma pessoa pode fazer depois que perde um familiar num desastre como o que matou os 95 passageiros do vôo da TAM?
Além do consolo divino, nada. O amigo que chora no seu ombro, o apoio dos parentes e até mesmo o carinho do povo ajudam, mas não há nada que lhe segure de pé. Só Deus. Eu nasci católico, minha mulher é crente. A dor diminui, mas não passa. Quando eu ouvi a notícia, o abalo foi instantâneo. Minha mulher chorou. Eles choraram conosco, e eu chorei por eles.
Pelo conhecimento que adquiriu com o desastre de seu filho, o senhor acha que os mecanismos de prevenção de acidentes desse tipo funcionam direito?
Quem está na Terra está sujeito a acidente. Pode ser de avião, de carro, de qualquer coisa. No caso da TAM o avião era de uma companhia idônea, tripulada por profissionais habilitados, não era uma arapuca como a do avião em que estava o Dinho. O dono do avião do Dinho sumiu. O dono da TAM apareceu. No caso dos Mamonas os mecanismos de prevenção não funcionaram.
E o que foi feito para que funcionem no futuro?
No início houve um oficial encarregado do inquérito que resolveu inocentar a equipe de terra. Não era culpa da torre, não era culpa da Infraero. Como a Aeronáutica detém o poder de julgar seus próprios funcionários, as coisas ficam difíceis. Um oficial chegou a dizer que o delegado que abriu o inquérito policial não tinha competência para tratar do assunto. Tinha, tratou e indiciou cinco pessoas, estabelecendo a culpa do piloto e do co-piloto, que morreram. Nós estamos com dois advogados acompanhando o caso. A informação que temos é de que os cinco indiciados serão denunciados. A lei tem que ser cumprida e os familiares tem que ir atrás, até o fim. Se eu tivesse aceito o que disse o oficial, estaria colaborando para que coisas como a que aconteceu com o Dinho se repetissem. Se todas as pessoas que são submetidas à provação que eu fui correrem atrás das responsabilidades, as coisas melhoram. E nós estamos atrás deles.

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