São Paulo, domingo, 3 de novembro de 1996
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Um modernismo vacilante

ELIANE ROBERT MORAES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Em 1917, um ano antes de sua morte, Apollinaire lançou o manifesto "L'Esprit Noveau", no qual fixava as bases da aventura modernista. O espírito novo, afirmava o poeta, distinguia-se das gerações precedentes por eleger a surpresa como motivo principal; mas, para descobri-la, "pode-se partir de um fato cotidiano: um lenço que cai pode significar para o poeta uma alavanca com a qual erguerá todo um universo...".
Tal empenho em capturar o detalhe, o insignificante e o efêmero, expressava não só o procedimento privilegiado do artista moderno, mas também seu profundo desprezo pelas grandes leis gerais que diziam governar a totalidade da vida. Já não era mais possível reconhecer qualquer legitimidade nos "sistemas" e "tipos" absolutos que haviam sido elaborados durante o século 19. Diante da desconcertante dispersão do mundo contemporâneo, o espírito mantinha-se em permanente suspensão: descartada qualquer ambição de criar obras duradouras, restava a dinâmica acelerada da mutação. As formas de sentir e de pensar submetiam-se às exigências do instantâneo, transformando o cotidiano em laboratório da sensibilidade moderna.
É também de um fato cotidiano que parte o autor de "Morte de Alguém", romance de 1911: aqui o acontecimento em foco é a morte de Jacques Godard, obscuro viúvo aposentado, cuja existência passara despercebida a quase todos. Não é, contudo, o fato em si que mobiliza a narrativa, e sim sua repercussão: ao longo do romance, o autor procura descrever o impacto da notícia da morte de Godard em diferentes consciências, passando de seus pais a indivíduos que nunca o conheceram.
"Morte de Alguém" é um dos textos mais importantes de Jules Romains -pseudônimo de Louis Farigoule Romains (1885-1972). Trata-se de uma narrativa híbrida, em que certos traços modernistas aparecem ao lado de convenções tradicionais do romance. Dessa equação literária resultam tanto alguns "achados" quanto um ultrapassado tom grandiloquente. Com isso, sua importância, hoje, torna-se efetivamente datada.
Num certo sentido, a morte de Jacques Godard pode ser considerada tão insignificante quanto "o lenço que cai" de Apollinaire. Em ambos os casos, estamos diante de um fato irrelevante cujo significado é, em última instância, dado pelo artista. Porém, em "Morte de Alguém", esse sentido parece assumir perspectivas diversas. Na verdade, embora adote certos procedimentos modernistas, a narrativa de Romains mantém grande fidelidade a ideais do século 19.
Ao eleger o cotidiano como ponto de partida, não é a "surpresa" que está no horizonte deste romance. Pelo contrário, vasculha-se o dia-a-dia de determinados indivíduos, o objetivo da investigação é antes a descoberta de uma "verdade" que, no limite, antecederia os próprios acontecimentos. Assim o que se impõe é precisamente a trama de relações engendrada pela morte de Godard: reduzidos à expressão da vida coletiva, os personagens perdem sua particularidade. Aqui, a literatura rende-se à sociologia.
O século 19 viu florescer diversas teorias sobre a sociedade como um conjunto autônomo, animado por uma força anônima e difusa à qual os indivíduos se submeteriam. Do "consenso social" de Augusto Comte à "consciência coletiva" de Émile Durkheim ou à "psicologia das massas" de Gustave Le Bon, essas teses chegaram ao século 20 com todo vigor. Na literatura, sua expressão mais acabada encontra-se talvez no unanimismo, doutrina fundada por um grupo de escritores franceses -entre eles o próprio Romains- que buscava superar a representação das particularidades para revelar a "alma coletiva" dos grupos humanos.
Em "La Vie Unanime" (1908), Romains conta que, certo dia, caminhando por Paris, sentiu-se tomado pela "intuição de um ser vasto e elementar, cujo corpo era formado pela própria rua, pelos carros e pelos transeuntes, e cujo ritmo se elevava sobre os ritmos das consciências individuais". Sob tal inspiração -mas igualmente animado pelo naturalismo de Zola- ele propõe um alargamento do campo poético, aberto às formas de sentir a atmosfera física e os fatores sociais. Embora sua fase unanimista seja reconhecida sobretudo nos livros das primeiras décadas do século, suas obras seguintes ainda sugerem a presença de um "ser coletivo".
Não é difícil perceber aí um eco das teorias deterministas, filiadas ao "espírito científico" do século 19, cuja legitimidade foi terminantemente contestada pela geração modernista. Por trás dessas concepções reside também um ideal de humanismo que os 27 volumes da grande obra de Romains -"Homens de Boa Vontade", escrita entre 1932 e 1946- deixam entrever na insistente defesa de uma "aproximação entre os homens e os povos".
Ora, é precisamente nesse ponto que a perspectiva de Romains se distancia ainda mais do programa modernista: ao formular os primeiros parâmetros de uma estética "desumana", para usar aqui o termo de Ortega y Gasset, Apollinaire manifestava uma oposição radical aos discursos abstratos que se apoiavam numa suposta totalidade da vida. Nas afirmações do "homem universal", o poeta denunciava a indiferença pela singularidade concreta dos seres e pela particularidade sensível de cada indivíduo. Dessa recusa dos ideais humanistas resultava um deslocamento do horizonte humano: era preciso buscar um novo sentido para a vida nos atos mais corriqueiros -até mesmo num simples "lenço que cai"- para reafirmar a irredutibilidade da existência sensível aos modelos ditos "universais".

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