São Paulo, domingo, 3 de novembro de 1996
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A procura da felicidade

ROBERT DARNTON

A 'procura da felicidade' é a mais memorável das frases da Declaração de Independência, o clímax retórico da declaração jeffersoniana dos direitos naturais
Será que podemos citar Jefferson hoje, a fim de sustentar apelos por uma legislação de bem-estar social?

Continuação da pág. 5-7
A última linha de "Cândido" -"Há que cultivar nosso jardim"- é a observação final de um discurso filosófico que acompanha uma trama vivaz e picaresca. Pronunciada pelo protagonista já muito castigado, ela deve ser entendida como resposta a uma questão. Mas qual questão? Nenhum personagem faz qualquer pergunta a Cândido nesse último capítulo do livro. Apenas tagarelam entre si, como vinham fazendo ao longo de toda a história. A questão está na própria história. Correndo atrás de Cunegundes, seu grande amor, de aventura em aventura, Cândido está na verdade perseguindo a felicidade. Como encontrá-la? É esta a questão proposta pela novela, como de resto por todo o Iluminismo francês; podemos reformular a resposta da seguinte maneira: "A Felicidade está no cultivo do nosso jardim".
Dentre as várias glosas ao texto, destacam-se quatro: retiro estóico (recolhendo-se ao jardim, Cândido e seus amigos dão as costas à política); utopismo pastoral (a pequena comunidade sustenta-se por meio da lavoura, distanciando-se do capitalismo comercial); redenção secular por meio do trabalho (todos trabalham duro, assim afugentando a pobreza, o tédio e o vício); e engajamento cultural ("cultivar" significa dedicar-se à causa da civilização). Cada uma dessas interpretações tem algo a seu favor e cada qual encaixa-se bem no contexto das preocupações de Voltaire em 1758, ano em que compôs "Cândido": seu rompimento com Frederico 2º, os horrores da Guerra dos Sete Anos; o desastre ainda mais horrível do terremoto de Lisboa; o debate sobre o problema do mal com os seguidores de Leibniz e Wolff e sua recente decisão de retirar-se para a vida de senhor rural em Les Délices, onde trabalhou duro para criar seu próprio jardim.
O motivo do jardim também faz pensar na utopia cristã do Éden, um dos alvos favoritos do jovem Voltaire. Como livre-pensador na Paris da Regência, ele celebrara os prazeres da alta sociedade (ou "le monde") e ridicularizara o ascetismo cristão. Assim, em seu credo juvenil, "Le Mondain" (O Mundano), ele rira da barbárie dos nossos ancestrais míticos num Jardim abandonado e coberto de ervas daninhas. Apresentava Adão como homem-macaco arrastando-se curvado com os punhos no chão, enquanto Eva aparecia como uma rameira fétida de unhas sujas.
Em vez do Éden, Voltaire celebrava o mundo de engenho verbal e beleza desfrutado pelos ricos e pelos bem-nascidos. A felicidade poderia ser encontrada não no paraíso, e sim em Paris; não na outra vida, mas aqui e agora. "O Paraíso Terrestre está onde eu estou", concluía "Le Mondain". Era um credo epicurista lançado à face da igreja, captando o espírito da sociedade dos "salons" do começo do século 18. Mas não tinha muito a dizer para aquela porção da humanidade que vivia na miséria.
Por volta de 1758, Voltaire aprendera algo mais sobre o mundo. Não que tenha deixado de gostar das boas coisas da vida. O último capítulo de "Cândido" inclui uma descrição da hospitalidade de um turco de espírito filosófico, cuja pequena propriedade rural serve de modelo para a de Cândido: sorvetes refinados, ótima seleção de frutas e nozes, "café moca, sem mistura com o péssimo café da Batávia" (Voltaire era viciado em café), recepção cortês da parte de suas duas filhas e conversa inteligente. Cândido havia recebido o mesmo tipo de hospitalidade -ainda que em escala mais grandiosa- do rei-filósofo de Eldorado, a sociedade utópica descrita no meio da novela. O próprio Voltaire oferecia-a a seus hóspedes em Les Délices e mais tarde em Ferney. O que distinguia esse tipo de boa vida do epicurismo advogado pelo jovem Voltaire em "Le Mondain"?
Em primeiro lugar, o cenário. Cândido instalou sua comunidade no extremo leste da civilização européia, tal como Voltaire adquirira sua propriedade rural na fronteira leste da França, longe de Paris e longe da política. "Jamais me informo sobre o que anda acontecendo em Constantinópolis", conta o anfitrião turco a Cândido. É claro que Voltaire fazia o que podia para se manter a par das intrigas na capital, mas de qualquer modo ele deixara para trás a vida cortesã. Retirara-se do "monde" e alterara algo de seu tom habitual. Uma nota nova, de ódio e trevas, introduziu-se nos seus escritos posteriores à fuga da Berlim de Frederico 2º. Voltaire viu-se mais e mais confrontado com a infelicidade e, pior ainda, com o mal.
Tomemos por exemplo um dos momentos mais infelizes de sua vida. Foi o ano de 1730, quando Adrienne Lecouvreur, sua amante, morreu inesperadamente, depois de ter desempenhado o papel principal no "Oedipe" do próprio Voltaire. O escritor ficou a seu lado até sua agonia final e pode muito bem ter testemunhado o tratamento pouco cerimonioso que se dispensou ao corpo. A morte chegou para Adrienne antes que ela pudesse renunciar à sua profissão e assim receber a extrema-unção. Uma vez que atores e atrizes eram excluídos dos ritos da igreja, seu corpo não pôde ser enterrado em solo sagrado: jogaram-no numa vala e cobriram-no de cal viva para acelerar a decomposição.
Esse tratamento obsceno viria a obcecar Voltaire até o momento de sua própria morte, quando temeu pelo que aconteceria com seu corpo. O tema aparece nas passagens mais passionais de sua poesia, nas "Cartas Filosóficas" e mesmo em "Cândido". No capítulo 22, Cândido visita Paris e ouve uma mesma história semelhante. Observa então: "Isso é bem pouco polido". Não é o que esperaríamos como comentário sobre a atrocidade que fizera ferver o sangue do amante.
Mas Voltaire carregava o termo "polidez" de uma paixão estranha ao leitor do século 20. A primeira característica notada por Cândido ao chegar a Eldorado foi a "extrema polidez" de seus habitantes. Ele se maravilhava com as boas maneiras, a indumentária elegante, as habitações suntuosas, sua cozinha requintada, a conversa sofisticada, o gosto refinado e a soberba argúcia de todos. O rei de Eldorado era o epítome dessas qualidades. Como o turco filosófico do final do livro, o rei "recebeu-os com toda graça imaginável e convidou-os mui polidamente a cear". Utopia é sobretudo uma "société polie" -ou "policée", o que vem a dar no mesmo.
A noção setecentista de "police" poderia ser traduzida aproximadamente por "administração racional". O termo pertencia (conceitual, ainda que não etimologicamente) a uma série de termos entrelaçados -"poli", "policé", "politique"- que se estendia da cultura à política. Para Voltaire, o sistema cultural do Antigo Regime estava conjugado ao sistema de poder, e os códigos da sociedade polida faziam parte do mundo político do despotismo esclarecido.
A interpenetração de cultura e política forma o tema principal do mais ambicioso dos tratados de Voltaire, "Le Siècle de Louis 14" (1751). Foi uma obra crucial para os autores do século 18, um livro que determinou o sistema literário do Antigo Regime e criou a história literária na França. Nele, Voltaire argumentava convincentemente que toda história é história literária. Reis, rainhas e generais não contam grande coisa a longo prazo, ainda que atraiam tanta atenção de seus contemporâneos e ocupem boa parte da narrativa de Voltaire. O que importa acima de tudo é a civilização. Dessa maneira, das quatro eras "felizes" da história da humanidade, a mais feliz foi a de Luís 14, quando a literatura francesa alcançou seu zênite e a polidez ("la politesse et l'esprit de société") dos franceses servia de padrão para toda a Europa.
Por "civilização", Voltaire entendia a força motriz da história, uma combinação de elementos estéticos e sociais, costumes e boas maneiras, que impele a sociedade na direção do ideal de Eldorado, um estado em que todos os homens são perfeitamente "polis" e "policés". Polidez queria dizer poder, e era nesses termos que Voltaire via a conexão entre a literatura clássica francesa e o absolutismo de Luís 14. Este argumento está por trás dos episódios decisivos de "Le Siècle de Louis 14". O rei adquire domínio da língua francesa estudando as obras de Corneille; controla a corte por meio da encenação de peças teatrais e domina o reino transformando a corte em teatro exemplar.
A idéia pode ser clichê hoje em dia, mas foi Voltaire quem a inventou. Ele entendia o poder como uma forma de performance teatral: a partir de Versailles, um mesmo código avançava rumo a Paris, às províncias e ao resto da Europa. Voltaire não nega a importância dos exércitos, mas interpreta a supremacia de Luís 14 como fruto, em última instância, de uma hegemonia cultural. O roteiro de seu tour de force cortesão era obra de Molière, que Voltaire descreve tanto ora como "filósofo" ora como "legislador das boas maneiras da alta sociedade" ("le législateur des bienséances du monde").
Por anacrônica e imprecisa que pareça, essa visão da história contém algo mais que o anseio do "mondain" pelas boas coisas da vida. Ela lhe empresta direção, propósito e poder -algo de semelhante ao "processo civilizador" de Norbert Elias. Ela também rebaixa os reis e exalta os filósofos como verdadeiras forças da história. Finalmente, ela dá um aspecto progressivo ao processo histórico: por desigual que seja seu passo, a barbárie sempre cede diante das forças da civilização.
Cândido acaba por se reunir a essas forças: torna-se filósofo. Não um falso filósofo como seu tutor Pangloss, mas um autêntico, que opta pelo engajamento em vez da retirada. Sua procura da felicidade -corporificada em Cunegundes- não o leva a um final feliz. Quando ele alcança esposá-la, ela já é feia e desagradável. Mas a procura ensinou-o a se dedicar a algo de mais substancial: a sociedade polida, o processo civilizador.
A "procura da felicidade" é mais familiar para os norte-americanos do que o "há que cultivar nosso jardim" é para os franceses. Afinal, ela é a mais memorável das frases da Declaração de Independência dos EUA, o clímax retórico da declaração jeffersoniana dos direitos naturais e da teoria revolucionária: "Consideramos evidentes todas estas verdades: que todos os homens foram criados iguais, que todos foram dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis e que entre eles estão a Vida, a Liberdade e a Procura da Felicidade". O que Jefferson quer dizer com "procura da felicidade"? E o que isso tem a ver com um assunto que pertence à história das mentalidades -a saber, o "american way of life"?
Analistas do discurso político muitas vezes determinam o sentido de uma dada expressão, mostrando tanto o que ela quer quanto o que não quer dizer. "Vida, liberdade e propriedade" era a fórmula-padrão nos debates políticos do mundo anglófono durante os séculos 17 e 18. Ao substituir "propriedade" por "procura da felicidade", a Declaração de Independência desviou-se significativamente de outras cartas de fundação -por exemplo, a Petição de Direitos e a Declaração de Direitos ligadas às revoluções inglesas de 1640 e 1688, bem como as declarações americanas sobre o Stamp Act de 1765, ou ainda as do Primeiro Congresso Continental de 1774.
Se quisermos analisar a "procura da felicidade" como um ato de fala, seu sentido deve surgir, ao menos parcialmente, de um contraste implícito com o "direito de propriedade". Ao omitir esta última expressão, Jefferson mostrava ser um socialista enrustido? Ou por outra: podemos citá-lo hoje em dia, a fim de sustentar apelos por uma legislação de bem-estar social ou para refutar os partidários de um Estado mínimo, voltado apenas para o "laissez-faire"?
Antes de arrancar Jefferson do século 18 e jogá-lo no meio de nossas disputas ideológicas, seria avisado investigar quais conotações o termo "felicidade" tinha para ouvidos setecentistas. Na qualidade de advogado com interesses filosóficos, Jefferson tinha um conhecimento bastante completo da tradição do direito natural, que remontava a Platão e Aristóteles e era conhecida dos estudantes de direito, tal como Locke, Pufendorf, Burlamaqui e Blackstone haviam-na formulado.
O mais importante destes era Locke (Jefferson tinha aversão pessoal aos "Comentários" de Blackstone). Na verdade, Locke foi tão importante, que muitos estudiosos consideraram-no o avô da Declaração de Independência, que propunha uma teoria contratual do governo que parecia diretamente emprestada ao "Segundo Tratado do Governo Civil" (1690).
Não resta dúvida de que o Segundo Tratado oferece bases para a afirmação do direito à rebelião contra governos que violam suas obrigações contratuais junto ao corpo de cidadãos. Mas e quanto a um suposto direito à felicidade? Locke restringiu-se à trindade habitual -"vida, liberdade, propriedade". Entretanto, em seu "Ensaio sobre o Entendimento Humano" (1690), ele ampliou o sentido de "propriedade" para "vida, liberdades e posses", para então referir-se àquela "propriedade que todos os homens detêm sobre suas pessoas tanto quanto sobre seus bens".
Ao fazê-lo, ele se deslocava do terreno do direito para o da psicologia. Propriedade de si mesmo implica liberdade para o autodesenvolvimento, e este último era para Locke um processo epistemológico: ocorria sempre que os homens combinavam e refletiam sobre suas sensações -os sinais primários de prazer e dor- do modo que o "Ensaio" prescrevia. Sendo assim, o "sensualismo" da epistemologia de Locke podia ser conjugada aos direitos naturais de sua teoria política, de modo tal a tornar possível a idéia de um direito à felicidade.

Continua à pág. 5-9

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