São Paulo, terça-feira, 5 de novembro de 1996
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Os sinais do desastre estão nos croquetes frios

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Cada vez que há uma catástrofe, temos uma brusca sensação de vida. No Brasil, as catástrofes nos humanizam; há uma volta aos bons tempos em que um acidente quebrava a normalidade do nosso dia-a- dia. Hoje, as tragédias costumam ficar paradas, invisíveis como areias movediças, sobre as quais os eventos apenas dançam um balé, sem mudar nada.
O bom da catástrofe é que ela pode ter culpados. Ela restitui nossa velha esperança da relação entre "causa e efeito". Fulano fez um erro, pronto! Morrem 110 pessoas. Ilusão. O belo mundo da causa e efeito já acabou. Hoje, não temos mais o desastre com culpados visíveis. Dizemos com esperança: terá sido uma "falha humana"? Ou um crime? Terá sido o míssil de um islâmico louco que derrubou o TWA? Seria um grande consolo.
Mas raramente temos o alívio de um assassino ou de um incompetente. O Primeiro Mundo nos impõe o inferno do funcionamento perfeito. Como um Boeing ou um Fokker podem errar? "Tem de ser falha humana", choramos com fé. Já imaginaram se não pudermos confiar mais nos computadores do capitalismo que programam nosso destino? É o medo da "revolta dos robots".
O capitalismo tecnológico nos promete que o mal será combatido pelo bom funcionamento dos equipamentos. Uma "utopia técnica" substituiu a utopia social. A social já dançou. Só nos resta a IBM. E se ela falhar? Tudo tem de ter um culpado. Será a TAM? Mas o comandante Rolim é um dos poucos empresários simpáticos... Será a culpa da Fokker, que errou na arrochadura de parafusos? Será a culpa de quem? Tudo pode ser.
Só não suportamos que, sozinhas, como um "poltergeist" sinistro, as engrenagens comecem a se mover sozinhas, que as "porcas" se espanem, os engates se soltem e a máquina sozinha, numa revolta surda sem causa, se dissolva no ar, com todos nós dentro. Por isso, volto a dizer: cada tragédia é uma esperança. Se houve "falha humana", há controle possível. Se não, estamos perdidos.
Loteria da morte
Dentro do avião (só entro de pé direito), nos sentimos perto do mistério. As aeromoças têm um halo lívido em suas cabeças. Como Nelson Rodrigues, tenho vontade de perguntar: "Vocês morrem quando?" Estaremos marcando nosso fim no balcão da Varig? Por isso, quando ele cai (e não estamos dentro), temos um alívio; quase culpamos de insensibilidade os que morreram.
Por que os desastres como esse têm uma "mídia" enorme? Revistas coloridas, TV, bandeiras arriadas. Por quê? Por que não se registra a tragédia com um silêncio de igreja? Porque precisamos que a tragédia seja quase uma loteria ao contrário, um bilhete premiado.
Mas, a tragédia invisível, parada está ali o tempo todo, debaixo do nosso nariz. Já olharam Congonhas? É bordado de edifícios de 15 andares bem do lado da pista. Outro dia vi uma garotinha fazendo bolhas de sabão numa varanda, e eu me senti uma daquelas bolhas prestes a estourar.
Já o aeroporto Santos Dumont tem pista curta. O Boeing já desce freando; antes de encostar no chão, já canta os pneus.
Sempre tenho as duas fantasias horrendas: ou explodir numa sala de jantar de Jabaquara ou ver badejos e tainhas pulando na minha janela ao pousar no Rio. Mas ninguém liga para a tragédia sem sangue, sem corpos mutilados. A tragédia invisível parece que não é trágica.
Queremos transformar a fatalidade em acidente. Mas há uma diferença. O acidente é a explosão do acaso, a bolha de sabão, a falha da vida. O acidente é um "ato de Deus", como dizem os americanos. A fatalidade é o que tinha de acontecer. O que estava armado para rolar. Queremos enaltecer o acidente com flores coloridas na imprensa para esquecermos que a fatalidade nos espreita ali nas ruas do subdesenvolvimento.
A bicha fatal
Os Boeings, os Fokkers sempre me provocaram emoções de índio. Sempre tenho vontade de gritar "Caramuru!" quando subo num 747. Há alguma coisa de antinatural no grande avião. Nunca entendo que aquilo possa voar.
Uma vez o Sebastião Lacerda, meu bom amigo Sebastiarrão, estava num vôo de Paris para o Rio. São 4 horas da manhã, quando apagam tudo e até as aeromoças dormem. Tudo calmo no luxo do cruzeiro. Súbito, o grande Jumbo começa a cair. Cair, literalmente, embicado para baixo, como um Stuka na 2ª Guerra. E todos voavam e uivavam como galinhas em pânico dentro da nave que descia como um prego.
Sebastião contou-me que simplesmente "morreu" na queda de 2 ou 3 minutos entre centenas de desgraçados. Até que, por milagre, o avião se estabilizou. Sebastião se beliscava, não acreditando na própria vida.
A causa dessa "tragédia-sub" foi um travesti em crise, deportado da França, que jogou uma bomba de gás lacrimogêneo na cabine de comando. Só! Vingança da bicha louca! Por milagre, o co-piloto tinha ido fazer xixi e voltou a tempo de segurar o Jumbo na mão. "Coisas nossas" contra o Boeing. A solidão da pobre "traveca" contra a tecnologia de ponta.
Há muitas tragédias invisíveis, prontas para disparar: controladores de vôo mal pagos, mecânicos que moram em favelas, a espantosa cara de gângster de presidentes de empresas aéreas.
A má qualidade dos aviões que pegam passageiros como ônibus, a necessidade de otimizar lucros, terceirização da manutenção e encrencas técnicas que não sabemos resolver, gatilhos brasileiros, jeitinhos, quebra-galhos misteriosos (quantos existirão?).
Pilotos angustiados, comandantes em crise conjugal, aeromoças feias e tristes, banquinhos apertados, a rotina dos pousos e decolagem, o tédio dos serviços, os desestímulos dos baixos salários.
Tudo isso se soma até o sintoma sinistro dos lanchinhos tristes e das croquetes frias na caixinha plástica.
E, quando explode o avião, como arranjar o culpado que nos absolva a todos? Como arranjar o criminoso que nos tire a angústia da turbina? Talvez a turbina tenha explodido porque quis...
Em Caruaru (lembra-se?), quem matou os 50 e tantos doentes dos rins? O assassino foi uma empada feita de água envenenada, miséria, burocracia, prefeitos boçais e equipamentos mal geridos. Quem explodiu o shopping center de Osasco ("remember?")? Foram os construtores daquela zorra, os engarrafadores de gás ou os ratos que roeram os tubos de borracha?
Ninguém. As catástrofes de hoje são defeitos de funcionamento. Assim como as máquinas de lavar quebram, assim caem os aviões. Assim morremos.

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