São Paulo, sexta-feira, 8 de novembro de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Sátiras da democracia

ADRIANE DA SILVA DUARTE

novas traduções de Aristófanes são um bom pretexto para falar um pouco desse autor que, juntamente com Menandro, está na origem da comédia ocidental. Cada um contribuiu à sua maneira para a tradição cômica. Se esse último excele na apresentação de tipos e na crítica aos costumes, o primeiro é um mestre na sátira da vida pública. Seu humor parte sempre de indivíduos e de situações concretas para, por derivação, atingir os graus mais elevados da fantasia, graças a uma imaginação prodigiosa.
Essas qualidades podem ser conferidas neste segundo volume dedicado à sua obra. São três comédias que têm em comum o coro animal, que as nomeia. A seleção das peças não segue a ordem cronológica e abarca as três últimas décadas do século 5º a.C., dando uma boa idéia de sua carreira.
"As Vespas" (422 a.C.) representa bem o primeiro estágio de composição do comediógrafo, em que a cidade de Atenas é a personagem principal. O sistema judiciário, mola-mestra do regime democrático, é o alvo de uma sátira virulenta. O coro é composto por juízes que, por sua ferocidade, são equiparados aos insetos que dão título à peça. A guerra do Peloponeso, então em curso, ecoa na disputa entre Filocleão e Bdelicleão, pai e filho que se posicionam de maneira oposta em relação a Cleão, político demagogo e principal expoente do partido belicista. O velho, um juiz exaltado, é seu ardoroso seguidor, enquanto o jovem o detesta. A missão desse último é fazer com que o pai e seus colegas percebam o quanto são manipulados em favor da política imperialista. A peça está longe de ser um panfleto, ao contrário, tem sequências de "gags" engraçadíssimas protagonizadas por Filocleão que ora se passa por fumaça para escapar de casa pela chaminé, ora transforma sua sala num tribunal para julgar um cão que assaltou a despensa.
"As Aves" (14 a.C.) é especialmente atraente para o leitor menos familiarizado com a Antiguidade por contar uma história de apelo universal. Dois velhos atenienses, Pisetero e Evélpides, cansados das querelas jurídicas, abandonam a cidade e embrenham-se na floresta em busca de outro lugar para morar. Depois de terem consultado Tereu, rei mítico transformado por Zeus em ave, decidem fundar uma cidade dos pássaros e declarar guerra aos deuses. Embora o enredo sugira uma utopia, a leitura atenta mostrará seu teor crítico. O idílio natural não tardará a ser maculado pela ambição sem limites do homem, ou melhor, do ateniense, cujo modelo acabado é Pisetero. Ele não se acanhará em assumir primeiro o comando sobre as aves, depois a liderança sobre os homens e, por fim, divinizado, o poder supremo do universo. E tudo graças ao poder das palavras, à capacidade de sedução e de convencimento (Pisetero em grego significa "companheiro persuasor"), que é exatamente o motor da democracia grega. Nesse sentido, por trás de toda a fantasia, paira o alerta contra os perigos do discurso populista, e isso justamente quando Alcibíades convencia a assembléia a lançar uma grande expedição contra a Sicília, que definiria o destino de Atenas na guerra do Peloponeso.
Quando "As Rãs" (405 a.C.) é representada, Atenas está mergulhada numa das crises mais negras de sua história. A derrota na guerra é questão de tempo (a rendição se dará no ano seguinte), o tesouro público está falido e, para completar, Eurípides e Sófocles, dois de seus maiores poetas, morrem quase que ao mesmo tempo. Inconformado com a mediocridade a que fica reduzida a cena ateniense, Dioniso, o deus do teatro e do vinho, desce ao mundo dos mortos em busca de Eurípides. Após um grande quiproquó, em que o deus se faz passar pelo herói brutamontes Héracles e por seu escravo Xântias, ele se torna juiz da disputa entre o tragediógrafo, que pretendia resgatar, e seu predecessor, Ésquilo.
Recentemente, Harold Bloom situou nessa disputa o primeiro caso de angústia da influência da literatura ocidental, por apresentar dois poetas de gerações diferentes, lutando pelo trono da poesia no Hades. Outros consideram "As Rãs" um texto fundador da crítica literária. Embora Aristófanes se mostre um perspicaz analista da obra de seus colegas, não há na sua comédia nem o rigor nem a coerência do crítico. Os poetas equilibram virtudes e defeitos e nem mesmo o teste da balança, em que versos são pesados como se fossem queijo (sic), é decisivo. Tudo se encaminha para a escolha de um critério extraliterário, cada um deve propor uma solução política para a crise da cidade. Nesse contexto, Ésquilo é escolhido não por sua obra, mas por representar a Atenas vencedora em Maratona. É essa imagem de sucesso que se oferece para revitalizar os cidadãos nesse momento difícil.
Com novo volume anunciado para o ano que vem, oito das onze comédias de Aristófanes estarão à disposição dos leitores brasileiros. As edições de que dispúnhamos antes eram na sua maioria portuguesas, o que era catastrófico para o efeito cômico do texto, a despeito de toda a seriedade dos tradutores. A comédia em geral e a aristofânica em particular requerem o uso de uma linguagem ágil, do dia-a-dia, da gíria e do calão. A comunicação tem que ser imediata, pois piada explicada perde toda a graça. E o português de Portugal dista muito do falado no Brasil para satisfazer essas exigências.
Pena que as traduções de Gama Kury sejam um pouco descuidadas. Erros de fácil correção, homogeneidade de linguagem que mascara o uso amplo que Aristófanes faz dos registros de fala, o emprego de gírias datadas ("coroa", "bacana"), a incoerência na transliteração (Ésquilo ao lado de Aisquines), são alguns dos problemas que surgem na leitura. Nada que uma boa revisão não resolva. É bem verdade que a comédia não é dos gêneros mais fáceis de traduzir, e que a posição do observador externo é a mais confortável, mas nunca é demais exigir do tradutor que reflita sobre o texto.

Texto Anterior: Um país sem política externa
Próximo Texto: O mundo estetizado
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.