São Paulo, sexta-feira, 8 de novembro de 1996
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Falácias do universalismo

NELSON AGUILAR

existem antropólogos de gabinete e de campo. Associações frutuosas ocorreram entre ambos, por exemplo, Frazer e Malinowski, demonstrando-se afinal que nenhuma das opções é excludente em relação ao saber do homem. Só um caso fere a área epistemológica: quando o fechamento numa das alternativas é tão grande que a pesquisa só espelha preconceitos.
Venâncio Filho afirma posições formalistas, greenberguianas, da época em que a verdade do mundo artístico se condensava na passagem da escola de Paris à de Nova York. Felizmente, o livro do crítico norte-americano Clement Greenberg, "Arte e Cultura", acaba de ser traduzido em português, constituindo-se numa peça preciosa entre nós para a compreensão da história da crítica artística no século 20.
A grande contribuição de Greenberg advém de seu elo com a melhor crítica formalista, procedente de Konrad Fiedler, Alois Riegl, Heinrich Wõlfflin, entre outros. Causa impressão a maneira como o autor explica a evolução da arte moderna a partir de um ponto de vista kantiano, momento em que a arte tem que se explicar com sua especificidade para sobreviver à crítica exercida por seus próprios meios. Assim, a pintura passa por um exame contínuo de suas possibilidade em direção à planeidade absoluta. Manet dispensa a subcamada pictórica para tornar a tela referencial de si mesma. O grão exposto do tecido confessa que o evento artístico acontece numa "superfície plana, recoberta de cores, dispostas numa certa ordem" (M. Denis). A história da pintura passa a ser a da conquista da grande planície, da conversão do mundo tridimensional em índices bidimensionais. Assim, Monet, Picasso, Juan Gris, Jackson Pollock, Mark Rothko marcam as etapas da grande arte.
O limite para esse tipo de empreitada crítica ocorreu nos anos 60, quando a arte norte-americana passa do expressionismo abstrato à pop art. A partir daí, Greenberg se encastela no eremitério da pura visibilidade e não escreve mais sobre nenhum artista novo, quer se chame Rauschenberg, Johns, Warhol ou LeWitt. Um dos desafetos absolutos de Greenberg tem o nome de Marcel Duchamp, que escapa à malha formalista, constituindo a zona cega que sua teoria não consegue detectar.
Venâncio Filho não diz quem é seu mentor, mas os leitores de Greenberg não alimentam dúvidas acerca da filiação. Quando afirma que "o multiculturalismo é (...) uma estratégia de ataque à universalidade dos valores e critérios estabelecidos pela arte moderna", desponta a silhueta inequívoca do crítico nova-iorquino, patrono do "universalismo" na arte do século 20. Obviamente, o articulista não tem mais jeito de explicar como Marcel Duchamp, o transgressor do primado retiniano e formalista, reaparece na cena contemporânea.
Como Venâncio Filho lidaria com a arte brasileira a partir de sua estratégia purista? Um artista como Oiticica tira partido do acervo afro-brasileiro ou afro-americano para construir os Bólides, os Parangolés. A arte moderna procede por apropriação do que não é arte, eis a lição de Marcel Duchamp. O "ready made" propicia o desencarrilhamento de trajetos culturais habituais em busca de uma fulguração que ilumina territórios desconhecidos. Trata-se sobretudo de uma operação crítica que, mediante o encampamento de elementos estranhos à norma instituída, alarga progressivamente as fronteiras da arte. O relâmpago emitido pela obra de Oiticica, herdeiro de Duchamp, desbloqueia os sentidos para novas formas artísticas. Os espaços ambientais do penetrável "Tenda-Luz" revelam também a trama complexa de búzios, nervuras de palmas de palmeiras enfeitadas e ornamentadas dos cetros de Mestre Didi, artista convidado da 23ª Bienal Internacional de São Paulo, 13 anos atrás arrolado no capítulo sobre arte popular da "História Geral da Arte Brasileira", coordenada por Walter Zanini. A miscigenação na arte requer uma nova experiência da forma, não prescrita nos conceitos fundamentais da história da arte de Wõlfflin, seguidos por Greenberg e repetidos por Venâncio Filho.
Se a atitude multiculturalista ou politicamente correta tiver origem em Mário de Andrade ou Mário Pedrosa, subscrevo-me de bom grado à incriminação venanciana, mesmo porque os grandes e consagrados mestres europeus participaram do mesmo movimento. Basta lembrar o caso de Picasso e a escultura africana, que está na gênese do cubismo. Não por acaso, na 23ª Bienal de São Paulo, ele está localizado diante de Rubem Valentim, no espaço museológico e acenando para o cubano Wifredo Lam. Munch comparece na qualidade de autor de obra vincada pelas civilizações andinas ("O Grito") e deflagrador de outros valores artísticos que não os do europeu educado.
Vamos às questões levantadas: a noção de desmaterialização pertence tanto ao estilo "sfumato" de Da Vinci, pela abolição de contornos (cf. Lionello Venturi), quanto à predominância da clave colorística sobre o desenho em Giorgione, o que induziu vários intérpretes da "Tempestade" a aludir ao teor imaterial da obra (cf. Salvatore Settis). O curador Tadayasu Sakai endereça crítica irônica à situação marginal do artista contemporâneo asiático ao mencionar que o oriental só tem vez quando ultrapassa a consciência humana. Remete à arte de Yukinori Yanagi, que usa formigas para desconstruir as bandeiras de areia misturada com mel ou segue o percurso dos insetos com caneta, num quadrado desenhado no chão.
A desatenção de Venâncio Filho mostra como está distante dos pré-requisitos mínimos para um resenhista: o Islã não está ausente, pois na "Universalis" reside a obra instigante de Shirazeh Houshiary, iraniana domiciliada no Reino Unido, inspirada em figuras da mística muçulmana. Quanto à Índia, a curadoria convidou Anish Kapoor e o localizou no centro da exposição, mas isso é outro catálogo. Obviamente, o critério estético determinou a escolha de ambos artistas. Para tristeza de Venâncio Filho, a arte está presente em todos os continentes, não apenas em Nova York, Paris ou Colônia.
A "Universalis" está realizada para acabar com o falso universalismo, com o credo formalista que executa o itinerário Manet-expressionismo abstrato. Encerrou-se o período em que a Bienal de São Paulo era mera hospedeira de representações artísticas nacionais, coerentes ou não com o desenho conceitual da mostra. A "Universalis" coloca a instituição num patamar superior. O convite a seis personalidades do circuito internacional, além de testemunhar desejo de abertura, fomenta o intercâmbio artístico de maneira nunca experimentada no país até hoje.
Venâncio Filho se queixa do presidente de uma instituição cultural brasileira que contesta a hegemonia do lobby artístico euro-americano e reúne as condições para mostrar o que se produz fora dos circuitos abençoados pelo cartel das grandes galerias internacionais. Quando as metrópoles se apropriam dos valores culturais de regiões periféricas -Pollock se apossando das tintas industriais pesquisadas por Siqueiros ou das pinturas em areia dos índios navajos-, dão dignidade a esses patrimônios. Se marginalizados pretendem adquirir visibilidade, não passam de candidatos ao "green card", ao "salvo conduto universalmente válido, universalmente inconteste, universalmente legítimo". Estamos aqui diante de um caso extremo de colonização cultural, em que a identificação com o colonizador é tamanha, só igual à denunciada por Jean Rouch em seu filme "Les MaŒtres Fous", que deveríamos ficar em nossa concha e aguardar que os pescadores de pérolas metropolitanos nos capturassem.
A Bienal de São Paulo nem em seu início se prestou a esse papel. Quando Ciccillo Matarazzo a fundou, já praticou um gesto transgressor com os grandes centros artísticos internacionais, apossando-se de um privilégio por assim dizer régio. Em 1951, data de sua inauguração, já estava implícita a abertura artística.

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