São Paulo, sexta-feira, 8 de novembro de 1996
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Diversidade da 20ª Mostra é desprezada

LEON CAKOFF
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

É preciso voltar com a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo às suas origens. Nem tanto para se aproximar do número reduzido de filmes das primeiras edições mas pela necessidade de continuar escrevendo durante o evento para motivar mais os leitores com a paixão da descoberta.
Há alguns anos, parei de escrever durante a Mostra em nome de uma discutível ética, o que resultou em dupla frustração.
Durante, por ver filmes e autores serem ignorados; e depois, por não ter exercido a paixão jornalística e a provocação que formam a base da própria Mostra desde a sua criação, há 20 anos.
Como aceitar que se desbote o furor de tanta diversidade com um simples balanço parcial do que foi a 20ª Mostra Internacional de Cinema, mal terminado o festival, como se viu na própria Ilustrada da última terça?
Como é possível passar "em branco" a provocação da sua inauguração na belíssima estação Júlio Prestes, restauro que se deve creditar ao empreendimento "chateaubrianico" do professor Emanuel Massarani, com o filme "preto" "Basquiat"?
A cegueira de nossas elites frente à miséria galopante foi simbolizada por um mapinha-convite para se chegar à estação da pré-estréia, área cercada por lumpens atônitos e agressivos por todos os lados.
O Basquiat da tela, hoje cultuado pela sua efêmera criação artística, repete-se na vida real com miseráveis que espalham abandono por toda a cidade de São Paulo, já comprometendo até os limites da av. Paulista, uma terra de ninguém depois do horário comercial.
Miséria
Num passeio noturno com o transformista Jeffrey Wright, o Basquiat do filme de Julian Schnabel, que tem em "Pixote", de Hector Babenco, a sua maior fonte de inspiração, vimos o novo inferno instalado no histórico calçamento do Pátio do Colégio, com perto de uma centena de "Basquiats" dormindo, como o personagem real no começo do filme, em camas improvisadas no papelão.
A miséria avança e com ela a nossa insensibilidade e indiferença. Como antídoto temos o cinema para continuar mantendo os nossos olhos abertos.
O belíssimo curta italiano de Nanni Moretti que acompanhava a exibição do longa iraniano "Tempo de Inocência", de Mohsen Makhmalbaf, resumiu a nossa condição de flagelados e miseráveis culturais.
No curta, Moretti parodia a sua própria resistência ao cuidar de cada detalhe do seu próprio cinema em Roma, onde estréia "Close-Up", de outro mestre do cinema iraniano, Abbas Kiarostami.
Ao final do dia, Moretti contabiliza os ingressos do seu cinema, que mal atinge uma centena de espectadores, contra os milhares arrecadados por filmes americanos lançados no mesmo dia.
O ato de resistência não é apenas um exercício de estilo jornalístico ou cinematográfico.
É uma necessidade, uma iniciação que se deve perpetuar, nem que seja pateticamente, como Moretti evoca em seus filmes ou no seu pequeno cinema.
Sentinelas-espectadores
Ou, como na Mostra, em que a cada ano o ato de seduzir é transmitido, esperamos, a novas gerações de sentinelas-espectadores.
Ou, como no cinema comovente de Makhmalbaf, que teve na Mostra duas obras-primas, lições de resistência e dignidade.
Com "Gabbeh", em que nômades do norte do Irã manifestam suas aspirações de liberdade tecendo com traços primitivos uma tapeçaria colorida e comovente.
E com "Um Instante de Inocência", seu último filme, que lhe causa novamente problemas com a censura islâmica, ironicamente um filme de paz, autobiográfico, anti-violência, uma versão iraniana de "Pra não Dizer que não Falei de Flores".
Makhmalbaf relembra um atentado que cometeu contra um guarda do tempo do xá da Pérsia, quando foi preso e torturado.
Vinte anos depois, mais uma prisão sob o regime dos aiatolás, Makhmalbaf aplica a metalinguagem para reconstituir o seu crime com atores hoje incapazes de encenar o seu gesto então adolescente de violência...
Tanto a atriz de "Gabbeh", Shaghayegh Djodat, como o ex-policial de "Um Instante de Inocência", Mirhadi Tayebi, saíram dos testes do explosivo "Salve o Cinema", do mesmo Makhmalbaf, que resultou no ano passado a melhor das homenagens ao centenário do cinema.
Era um filme-documentário sobre uma massa de deserdados, uma multidão de Basquiats que acorria a um teste de cinema a fim de garantir a sua vaga no limbo da eternidade.
Na leitura de apenas mais um filme da seleção da 20ª Mostra, "Nitrato de Prata", do mestre italiano Marco Ferreri, outra homenagem ao centenário do cinema, não é o cinema que está em decadência.
São as suas platéias desmotivadas, nas últimas duas décadas.
Com elas vai para o brejo a informação, a emoção, a curiosidade, o inconformismo e a resistência cultural. E a imprensa indolente e servil, teleguiada por press-releases e agentes de uma indústria que não tolera a diversidade.
Ridículo dizer que faltaram filmes premiados em Berlim, Cannes e Veneza.
O delicado "Cavafy", do grego Iannis Smaragdis, lotou as salas da Mostra apesar de ignorado pela imprensa. E está na seleção do próximo Festival de Berlim.
"Bela Aldeia, Belas Chamas", do sérvio Srdjan Dragojevic, é uma revelação internacional da Mostra e vai correr o mundo agora, a exemplo da revelação do prêmio do público do ano passado, "O Carteiro e o Poeta", de Michael Radford, exibido na 19ª Mostra sem uma nota sequer nos jornais.
Vanguarda e ignorância progridem juntas, em direções opostas.
Na mesma linha segue este ano outro brilhante filme, a produção portuguesa-holandesa "Morto pra Chegar em Casa", dirigida a quatro mãos por Carlos da Silva e George Sluizer, em que um fantasma vaga desconsolado pela burocracia da Comunidade Européia, implorando para que o seu corpo seja enterrado na aldeia em que nasceu.
A bem da verdade, convém revelar que as sessões de imprensa da Mostra, em sua grande maioria, sempre estiveram vergonhosamente vazias.
Mas, símbolo de um dos momentos mais comoventes desta última Mostra, sem falar na retrospectiva completa do genial Theo Angelopoulos e na revelação do cativante Eizo Sugawa, fica a imagem descomposta do diretor e roteirista irlandês Jim Sheridan, confessando a sua ignorância cinematográfica e sua prisão às comodidades da língua inglesa e aos caprichos de Hollywood.
Antes tarde do que nunca... Sheridan fez prometer que lhe seriam fornecidas cópias em vídeo dos melhores momentos desta Mostra, insistindo prioritariamente na cópia de "Um Instante de Inocência". Uma diversidade que, com todo o seu poder de cineasta combativo e oscareado, ele não consegue acessar. E nós sim.

O jornalista Leon Cakoff é organizador da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.

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