São Paulo, quinta-feira, 14 de novembro de 1996
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Dead Man

OTAVIO FRIAS FILHO

Desaparecido das telas durante anos, o cineasta Jim Jarmusch está de volta com "Dead Man", em exibição no Cinearte de São Paulo. O filme é um "western" crepuscular, se é que a expressão não resulta em pleonasmo, um daqueles faroestes existenciais que não se recomendam exceto aos aficcionados do gênero.
Os gêneros atravessam fases, primeiro de entusiasmo, a seguir de ambivalência e por fim de ironia -é nesta etapa terminal que se localiza "Dead Man". Ele parodia em branco e preto as léguas de celulóide já rodadas sobre o assunto, acrescentando mais uma camada de realismo visual e coincidências absurdas.
Feijão em lata aquecido ao redor de fogueiras, cavalos, uísque e tabaco, prostitutas de boa alma, a onipresença falocrática do revólver, estão ali todos os elementos que fizeram do "western" uma espécie de paraíso masculino capaz de reunir os atrativos do escotismo e da delinquência num só modo de vida.
Para viabilizar a junção mágica, síntese do princípio do prazer masculino, o recurso do roteiro (também adotado por Jarmusch neste filme) é forçar um homem "bom" a se tornar assassino, de forma que ele possa matar xerifes, pistoleiros e índios a valer porque sua prima foi estuprada ou ele confundido com algum vilão.
Não é por acaso que as mulheres costumam detestar o "western". Se o sentimento romântico é uma idealização unilateral da sexualidade, tal como ela é vista por um dos dois sexos, o faroeste seria o romantismo masculino por excelência, a contrapartida das historinhas de amor coroadas pela maternidade.
Embora essas identidades esquemáticas correspondam a uma parte indelével da imaginação, é óbvio que elas estão em crise. Já nos 60 o faroeste tornava-se mais introspectivo ou crítico, era a fase da ambivalência. "Pequeno Grande Homem" (1970), por exemplo, com Dustin Hoffman, era um panfleto pacifista.
O gênero foi desmontando, do "western spaguetti" ao "western"-cabeça de Clint Eastwood, com seus tons existenciais, quase sartreanos. O tradicional laconismo do herói se converte na mais fechada mudez, as panorâmicas telúricas, em meio às quais os filmes se arrastam, assumem a posição de quase-personagens.
O repertório emocional do faroeste só poderia manter-se, hoje, junto ao único grupo que ainda cultua a virilidade, o público homossexual masculino. Mas a manobra seria uma contradição em termos: sendo o traço oculto, recalcado nesse gênero, o homossexualismo não pode vir à tona sem provocar repulsa e horror.
A "Lordsburg" (Cidade do Senhor) do clássico "No Tempo das Diligências" (1939) é a cidade de "Machine" (Máquina) no filme de Jarmusch. São paródias que retraçam o que mudou no gênero agonizante e em nós. Não é um grande filme, infelizmente, mas é autópsia de um estilo que já foi sinônimo de cinema.

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