São Paulo, domingo, 17 de novembro de 1996
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Brasil tem 50 milhões de "clandestinos"

MARTA SALOMON
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

O Brasil tem 30% de sua população "clandestina". São quase 50 milhões os brasileiros que não possuem registro de nascimento e, por isso, não têm existência legal no país.
Os números são do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) e projetam o percentual de brasileiros que nasceram em maternidades, foram computados pelos censos populacionais, mas cuja existência passou distante dos cartórios.
Só em 1994, último ano pesquisado pelo instituto, nasceram mais 991 mil brasileiros "clandestinos".
Uma parcela dessa população "virtual", prevê o demógrafo Celso Simões, que pesquisa o fenômeno do sub-registro, vai morrer sem existir legalmente, seguindo a tendência detectada pelo IBGE.
"Parte dessas pessoas vai ser solicitada a ter documentos quando for para a escola, servir o Exército, ou entrar no mercado formal de trabalho. Uns 10% da população nunca fará nada disso", diz.
Há oito anos, apenas 62,3% dos brasileiros maiores de 18 anos tinham o registro.
Cidadania cara
"Isso é inadmissível num país sério ao final do século 20", espanta-se José Gregori, coordenador do Programa Nacional dos Direitos Humanos.
O registro de nascimento é considerado o "ato inaugural" da cidadania. O brasileiro que não tem o papel é, segundo Gregori, um "cidadão que não conta, simplesmente não existe".
Sua tarefa agora é enfrentar o lobby contrário à gratuidade do registro de nascimento, garantida constitucionalmente aos pobres e regulamentada por projeto de lei encaminhado pelo presidente Fernando Henrique Cardoso ao Congresso em setembro.
Os donos de cartórios, principais opositores à medida, alegam que não podem bancar a conta do registro grátis e dizem que a atividade, delegada pelo Estado, dá prejuízo.
O preço do registro é apontado como o principal obstáculo ao fim das altas taxas de clandestinidade. O papel custaria, em média, R$ 15, segundo tabelas fixadas por leis estaduais.
Parte dos 10 mil cartórios de registro civil do país cobra acima da tabela.
"A gratuidade não é cumprida, e a tabela praticamente não existe", afirma a pediatra Ivone Azevedo, na tentativa de explicar a legião de brasileiros clandestinos.
Sem mortes
No ano passado, ao pesquisar a taxa real de mortalidade infantil em Alagoas, Ivone Azevedo encontrou municípios onde não nascia nem morria ninguém oficialmente há oito anos. Eram todos clandestinos em Cacimbinhas e Carneiros, por exemplo.
"As pessoas nascem e morrem sem serem cidadãos e nem sentem falta", constata a pediatra.
"A auto-estima dessas pessoas está tão em baixa, que elas nem sentem falta da certidão", acrescenta Paulo Germano, que fez o mesmo trabalho no Estado de Pernambuco.
No município de Ouricuri, ele contou 52 cemitérios clandestinos. O Estado de Pernambuco todo tem metade de sua população não documentada.
Outros 11 Estados do Norte e Nordeste têm percentuais ainda piores, principalmente na zona rural.
O Maranhão é o grande recordista da clandestinidade: 81,96% da população não tem registro. São Paulo apresenta o maior percentual (94,34%) de cidadãos com registro.
A população do pequeno povoado de Capela, no município de Cavalcante, a pouco mais de 300 km de Brasília, reconhece um a um os clandestinos da vizinhança. Eles estão em várias gerações do lugar.
"Quem é pobre, não tem dinheiro para pagar", diz Doralice Leão, de 15 anos, clandestina como o filho Cláudio Henrique, de um ano.

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