São Paulo, domingo, 17 de novembro de 1996
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Ana, 'é só Ana', supõe ter 66 anos

Goiana tem apenas atestado de pobreza

MARTA SALOMON
DA ENVIADA A CAVALCANTE (GO)

No balcão do cartório da cidade de Cavalcante, uma placa improvisada adverte: "Por favor, não peça certidão fiado".
Ana, que supõe ter 66 anos, nem desconfia. Analfabeta, ela tentava, na última quinta-feira, tirar o registro de nascimento.
Seu companheiro, Rosalino, comprou até uma fivela colorida para prender os cabelos de Ana na ocasião especial.
O nome? "É só Ana, só", responde ela à escrivã, que suspeita da idade apontada num atestado de pobreza que Ana, já com sobrenome Pereira dos Anjos, conseguiu na delegacia da cidade.
O registro em Cavalcante (a 324 quilômetros de Brasília) custa R$ 6,94, quando é feito no prazo de até 15 dias depois do nascimento.
"Vim arrumar o registro porque a pessoa não pode ficar sem", insiste Ana. Ela nunca frequentou a escola, nunca votou, nunca tirou carteira de trabalho, nem casou no papel.
A poucos metros do cartório, a placa que oferece boas-vindas ao visitante de Cavalcante, cidade que abriga uma mina de ouro, informa: "O progresso já chegou. Invista aqui".
O agricultor Pedro de Oliveira Silva contesta: "Isto aqui é muito atrasado".
Seu filho caçula, Valdisson, de 8 anos, também não existe legalmente. "Faltou dinheiro, e ele foi ficando."
Valdisson não sabe o que é ser cidadão brasileiro, muito menos que é um clandestino.
Não vai à escola, não vê televisão, não ouve rádio. Fica o tempo todo em casa com os irmãos mais velhos e a mãe. O ônibus, que passa rumo a Cavalcante, passa dia sim dia não.
Gerações de clandestinos
Perto da casa de Valdisson fica o igualmente isolado povoado de Capela, batizado assim por causa de uma pequena igreja, que fica durante a maior parte do tempo fechada.
"Aqui na roça não faz muita diferença ter o registro. A gente até precisa, mas não tem condições", lamenta-se Doralice dos Reis José Leão, 15, grávida do segundo filho.
Em sua casa, há três gerações de clandestinos. A sogra, Louriana da Cunha, de aproximadamente 60 anos, a própria Doralice e seu filho mais velho, Claúdio Henrique, 1, que não pode ser registrado por falta de documento da mãe.
O pai, Firmino, filho de Louriana, tem registro e título de eleitor. Só não lembra em quem votou na última eleição para presidente. "Foi naquela, aquela..."
A vizinha Altina Henrique Barbosa de Souza também não existe legalmente. Nem sabe sua idade. "Tenho uns 40 ou 50", imagina. Diz que já pediu o registro a muita gente, "mas ninguém ligou".
Altina também não sabe o que significa a ausência do papel. Foi à escola apenas uma vez. "Não aprendi nada, não ia ficar lá ocupando o lugar dos outros", disse.
Outra vizinha, Santira Ribeiro Marim, desconhece como transformar em realidade o sonho de tirar o registro dos filhos Eva, 5, e Divaldo, 8. "O pai deles bebe e não foi registrar", disse.
(MS)

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