São Paulo, domingo, 17 de novembro de 1996
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PE enterra 'zé ninguém' em cemitério clandestino

Falta de registro distorce índices de mortalidade infantil

ARI CIPOLA
DA AGÊNCIA FOLHA, EM SANTA MARIA DA BOA VISTA (PE)

A miséria do sertão e agreste de Pernambuco aliada ao preço cobrado por cartórios deixam 58 de cada 100 crianças que nascem por ano no Estado sem registro de nascimento. Muitos desses "zé ninguém" da nação acabam enterrados em cemitérios clandestinos.
Isso significa que cerca de 90 mil crianças pernambucanas não são registradas no mesmo ano em que nascem, distorcendo o índice de mortalidade infantil do Estado.
No total, segundo o IBGE, 50,6% dos pernambucanos não têm registro de nascimento.
A falta de registro das mortes de crianças de até um ano também é elevada. Um em cada três bebês que morrem é enterrado sem o conhecimento das autoridades.
Isso representa a omissão de cerca de 2.700 mortes de bebês por ano. No combate à falta de registro de nascimento e óbito, o governo estadual deparou-se com cartórios que cobram até 20 vezes mais pelo fornecimento desses documentos, tabelados em R$ 1,79 pelo Tribunal de Justiça de Pernambuco.
Os cartórios também não cumprem a Constituição de 1988, que determina que crianças pobres têm o direito a certidões gratuitas.
Muitos prefeitos passaram a pagar os cartórios. O Tribunal de Contas do Estado, porém, julgou ilegal o pagamento e determinou o reembolso da verba pública.
Em Santa Maria da Boa Vista, a prefeitura vinha pagando R$ 8,00, preço mais de quatro vezes superior à tabela por registro. Depois de saber o preço, a prefeitura reabriu negociações com o cartório.
"Lutamos pela gratuidade dos registros. Vamos fazer esse apelo ao Congresso, porque um país que não controla o nascimento e morte de seus moradores está criando problemas de segurança nacional", disse Agop Kayayan, presidente do Unicef no Brasil.
"O governo vai ter de nos pagar, senão vamos ter de fechar as portas", diz a tabeliã Maria Ivete Amorim Guimarães, cartorária na cidade. Ela diz que cobra R$ 3,00 por registro, mesmo contrariando a legislação. Mas os moradores dizem que o preço é de R$ 15,00.
Levantamento do governo pernambucano em 35 das 177 cidades do Estado, localizou 103 cemitérios oficiais e 186 clandestinos.
Sem coveiro
Nos cemitérios clandestinos as pessoas, de qualquer idade, são enterradas sem que seja exigida a certidão de óbito. Neles, nem Estado nem município sabem, quem e quantas pessoas estão enterradas.
A comunidade sabe onde é o cemitério. Não há coveiro ou funcionários. A chave, em geral, fica na casa do morador mais próximo.
Com o controle que o Estado quer implantar, o índice de mortalidade infantil das cidades com mais cemitérios clandestinos deve triplicar, no mínimo.
O principal bolsão de cemitérios clandestinos foi localizado em Petrolina, Ouricuri e Santa Maria da Boa Vista, extremo oeste do Estado. Ouricuri e Petrolina possuem 50 cemitérios clandestinos cada.
Ouricuri registra 9 mortes para cada 1.000 nascidos vivos até um ano de idade. Se fosse verdadeiro, esse índice estaria entre os melhores do mundo, comparável a países como Japão e Estados Unidos.
Em Petrolina, o índice é maior, mas, mesmo assim, irreal: 21 mortes para cada 1.000 nascidos vivos. O Brasil todo, no mesmo ano de 95, registrou 45 mortes de crianças de até um ano para cada 1.000 nascidas vivas. Em cidades da zona de mata, onde não há cemitérios clandestinos, o índice chega a 160 mortes por 1.000 nascidos vivos.

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