São Paulo, domingo, 17 de novembro de 1996
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Para malufistas, vitória é o início de caminhada para o Palácio do Planalto

ELIO GASPARI
COLUNISTA DA FOLHA

O eleito se chamava Celso Pitta, mas o nome que brilhava dentro do coração de fogos de artifício, comemorando a vitória, era o de Paulo Maluf. Em sua biblioteca de 60 mil volumes, a meia hora de distância da festa, o deputado Antonio Delfim Netto assegurava: "Paulo Maluf é candidato a presidente da República, ponto final".
"Começou a etapa de levá-lo ao Palácio do Planalto", informava José Eduardo Cavalcanti de Mendonça, o publicitário Duda Mendonça. Ele foi o chefe da campanha de Pitta, o obscuro secretário de Finanças do município que em janeiro tinha 9% das preferências nas pesquisas e na noite de sexta-feira era o novo prefeito de São Paulo, com 57,4% dos votos.
Maluf diz que por agora não conversa sobre o Palácio do Planalto, Delfim garante que ele só pensa nisso e Duda Mendonça é mais específico: "Ele já me disse que se tiver 90% de chances para o governo de São Paulo e 20% de chances para disputar a Presidência, vai para a Presidência".
As três vitórias
As vitórias de Maluf foram três. Primeiro elegeu o sucessor. Depois elegeu um sucessor que ninguém (nem ele, de certa forma) acreditava que poderia ganhar. Finalmente, elegeu-o como um sufixo de sua personalidade política. Atrelando Pitta a si e sua obra, descumpriu vitoriosamente um conselho do maior especialista eleitoral do mundo, o americano James Carville, criador de Bill Clinton e da frase que deverá decidir a sucessão brasileira: "É a economia, idiota".
"Acho que o PSDB não contou com o ímpeto que a vitória daria a Maluf", diz Fátima Pacheco Jordão, diretora da Fato, Pesquisa e Jornalismo, que até a véspera, sem ser petista, coordenara as pesquisas da campanha da candidata Luiza Erundina. "Ele foi capaz de nacionalizar o Projeto Cingapura e o PAS (Plano de Atendimento à Saúde). Maluf se localizou numa oposição a Fernando Henrique Cardoso pelo caminho do desenvolvimento, um tema em relação ao qual a elite está rachada."
Tudo isso foi conseguido em três anos de governo e seis meses de campanha, entre maio e a última sexta-feira. Maluf, com sua cabeça de engenheiro que confia em mão-de-obra qualificada, trabalhava desde o início de seu mandato com a idéia de que eleição pode ser coisa fácil: "Quando chegar essa hora, chamo o Duda Mendonça, faço o que ele manda e ganho", dizia há três anos. Enquanto sonhou com a possibilidade da própria reeleição, isso foi uma certeza.
Morta a reeleição dos prefeitos, temeu pelo futuro. Até maio, tentou se acautelar lançando um candidato de prestígio tão grande que, caso fosse derrotado, não arranharia o seu. Tentou uma rodada de conversas sigilosas com o banqueiro e ex-prefeito Olavo Setúbal, com o empresário Antonio Ermírio de Moraes e chegou a oferecer a cabeça da chapa ao então ministro do Planejamento, José Serra. Nenhum dos três quis. O jeito foi ir para a estrada com Pitta.
Nessa hora, dependeu de sua fé em Duda Mendonça, um baiano de 52 anos, criador de galos de briga (tem 400) que se julga parecido com o escritor russo Alexander Soljenistsin, mas, com sua barba curta, sem bigode, está mais para barão de engenho de açúcar. Desde 1992 almoçavam juntos todas as quartas-feiras. Fosse onde fosse que Duda estivesse, o "doutor Paulo" podia ouvi-lo.
Trancado por 14 horas diárias no escritório de sua produtora, no estúdio de televisão ou atrás das paredes de espelhos falsos das casas onde se faz psicanálise de povo, pesquisa de grupo, em publicitês, ele conduziu a campanha de Pitta. Comandou uma equipe de cem pessoas, metade delas envolvida diretamente na operação eleitoral.
Não se sabe quanto ganhou com a vitória. Ele revela que fechou um contrato de risco. Supondo-se que sua primeira proposta embutisse um lucro de 100, Maluf contrapropôs que, se Pitta morresse no primeiro turno, lucraria só 50. Indo ao segundo, lucraria mais 60. Ganhando, ficaria com os 110 mais outros 100. O que seriam 100 viraram 210.
Isso em São Paulo. Em Porto Alegre e em Vitória, a Duda Mendonça Marketing Político comprou os riscos errados. No Rio Grande do Sul, perdeu com uma candidata pesada (Maria do Carmo Bueno, do PPB), mas no Espírito Santo amargou uma derrota com Rita Camata, contra Luiz Paulo Velloso Lucas, que como secretário de Acompanhamento Econômico do Ministério da Fazenda liberou os preços dos seguros-saúde.
A disciplina política
Uma vez terminada, a campanha de Pitta adquiriu a lógica das batalhas contadas pelos vencedores. Apesar dessa distorção, o que aconteceu em São Paulo sugere que Fernando Henrique Cardoso tem diante de si um adversário bem mais complexo e ardiloso que Luiz Inácio Lula da Silva, Itamar Franco ou José Sarney.
Em primeiro lugar, enfrenta um opositor que move suas forças dentro de uma organização regida por severa hierarquia. O dr. Paulo voluntarista de 1984, com sua fé nos conchavos e ambulâncias voadoras para prefeituras amigas, é hoje apenas um complemento do Maluf com o ouvido colado nas classes C e D.
Trata-se de uma hierarquia de campanha já globalizada, tão forte que nos Estados Unidos permitiu a James Carville proibir Bill Clinton de pronunciar a palavra "infra-estrutura". Em São Paulo, no dia 13 de agosto, baseado na psicanálise de povo, Duda Mendonça informava a Pitta no seu boletim "Deu no Grupo de Ontem", que o eleitor não percebe direito o que vem a ser um "emprego indireto". Solução: dizer que "obra não dá emprego só para o peão, dá também para o engenheiro, para quem trabalha na fábrica de cimento e na serralheria".
Essa disciplina pretende assegurar o respeito a um conjunto de condutas que o candidato não pode transgredir, sob pena de estar trabalhando contra a própria eleição.
Pitta sabia que não devia demonstrar agressividade nos debates. Quando disse a Francisco Rossi que não haveria auditores vendo as contas da prefeitura porque o eleito seria ele, transgrediu a regra da humildade imposta a sua personalidade eleitoral. Duda e Pitta desentenderam-se, fizeram as pazes, e o candidato não voltou a pecar. Enquanto durou a campanha, foi chamado de Pitta nos programas de televisão. No último dia, quando lhe fizeram uma festa-surpresa, anunciaram-no como "dr. Celso", qualificação que poderia tê-lo ferido por soberba meses antes. Assim como os eleitores americanos nunca souberam que John Kennedy usava óculos, os paulistanos ignoraram que Pitta é o dr. Celso.
Essa máquina funciona como se por trás da campanha estivesse em curso uma eleição semelhante à do Telecine. Todos os candidatos, com graus variáveis de sujeição e de recursos, trabalham com tecnologia semelhante. Nenhum a teve tão precisa e abundante como Pitta na regência de Duda Mendonça.
Os 3 relógios de Duda
Afora o contato semanal com Maluf e o acesso instantâneo, Duda trabalhou toda a campanha com um acervo publicitário e três relógios no painel. No acervo estavam 18 minutos de televisão (única razão que levou o prefeito a se aliar ao PFL) com direito à novidade dos pequenos anúncios. "Eu tinha 10 anúncios em 7 emissoras e sei fazer esse tipo de coisa. Era um poder de inserção maior que o da Brahma e da Antarctica combinados", diz Duda.
O primeiro relógio do painel era uma pesquisa diária da Vox Populi com 400 pessoas.
No dia 18 de setembro, ela trouxe uma má notícia: José Serra empatara com Luiza Erundina, ambos com 16%, contra 43% de Pitta. Serra era o pesadelo de Duda e Maluf. Desde o dia em que lançara sua candidatura, desarticulara parte da campanha malufista, armada para triturar a candidata petista. Um segundo turno com qualquer candidato que não fosse Erundina era pelo menos uma hipótese muito mais trabalhosa.
Duda foi a Maluf e disse-lhe que era a hora de atacar Serra. Essa eventualidade não era nova. Maluf já apostara uma garrafa de vinho com a deputada Marta Suplicy, do PT, dizendo-lhe que não atacaria Erundina. Serra começou a levar chumbo. Em 48 horas baixou para 11%, e Erundina subiu para 20. Na Vox Populi, Serra nunca mais retornou aos 16%. Uma peça publicitária vinculando-o ao desemprego ficou na prateleira da produtora de Duda.
O segundo relógio era outra pesquisa diária, feita por telefone (leia-se classes A e B), na qual se ouviam só pessoas que assistiam aos programas de televisão. Elas informavam, por exemplo, que durante os 21 dias da reta final do primeiro turno, Serra estivera 20 vezes ligeiramente acima de Erundina. Surpresa: durante toda a campanha do primeiro turno, com duas exceções, essa amostra informava que os eleitores de Serra gostavam de seu programa, mas a segunda preferência ia para o de Pitta. (Tradução, o eleitor de Serra estava pronto para gostar de Pitta.)
Em situações de emergência produziam-se pesquisas específicas. Quando o PT colocou no ar uma musiquinha engraçada dizendo que "você pensa que o Pitta apita, mas o Pitta não apita não", o Ibope respondeu: 58% dos entrevistados acham que a música não influencia em nada, e 28% crêem que ela dará mais votos a Pitta. Estava confirmada a suposição de Duda Mendonça, desde o início da campanha, segundo a qual a acusação de que Pitta era um fantoche reverteria em seu benefício, por conta da popularidade de Maluf e do desejo de continuidade do eleitorado. "A música era boa, mas eles jogaram o dinheiro fora", diverte-se Duda.
O terceiro relógio, talvez o mais importante, era a psicanálise de povo. A pesquisa de grupo é o produto da análise do comportamento de um lote de 10 a 12 pessoas, trancadas numa sala e estimuladas por especialistas. Elas podem ser reunidas para discutir qualquer tipo de assunto. Não sabem quem está pagando nem vêem que estão sendo observadas.
Duda Mendonça patrocinava sessões diárias, mudando de local para evitar eventuais infiltrações de adversários. Terminada a sessão, recebia relatórios telefônicos de cada analista, antes mesmo que eles conversassem entre si. Esse recurso é utilizado por quase todos os candidatos (desde que tenham dinheiro para pagá-lo), mas Duda calibrou seu relógio de forma peculiar. Só estudava o comportamento de pessoas das classes C e D. Mais: só juntava pessoas que consideravam a administração de Maluf ótima ou boa. Uma sessão teve o próprio prefeito como espectador invisível, entrando e saindo da casa sem ser visto.
A seleção do povo refletia o coração de sua estratégia: tendo um candidato atrelado a um prefeito com mais de 50% de aprovação, sua tarefa era cuidar bem do que chamava de "terra adubada". Essa terra adubada malufista das classes C e D não está para brincadeira. Quando Erundina se desculpou por ter usado a expressão "branco safado", numa insinuação racista contra Pitta, um eleitor disse que ela era "tão baixa" que "se dedurou". Preço de obras? "Se ele gastou mais, é porque fez bem feito. Maluf faz obra é de Primeiro Mundo, de qualidade." No dia 11 de novembro a maioria do grupo achava que Pitta não devia ir ao debate da TV Globo ("Ela está querendo colocar o Pitta nervoso"). Por essa e por outras razões, Pitta não foi. Aviso aos navegantes: o programa de renda mínima é visto como "moleza para quem não gosta de trabalhar".
Duda só misturou classes, chamando a A e B, quando Serra entrou no páreo, mas precisou de poucas sessões. Num caso, reuniu apenas eleitores da candidata do PT e mostrou-lhes um anúncio no qual se dizia que a campanha estava decidida e só restavam dois candidatos viáveis: Pitta e Erundina. "Agora você decide", dizia o locutor. Os eleitores petistas, que não sabiam quem era o curioso, disseram que a frase soava agressiva. Outra sessão, desta vez com um "você decide", e o slogan foi aprovado. Foi ao ar para conter o crescimento de Serra, garantindo o sonho malufista de um segundo turno contra o PT.
O fim da sopa
Numa eleição presidencial Maluf não terá a sopa de escolher o adversário, muito menos a de tirá-lo do PT. Aprovada a emenda da reeleição, ele certamente se chamará Fernando Henrique Cardoso. "Se a situação do país estiver como está hoje, será uma briga boa", diz Duda Mendonça.
Ele sugere a possibilidade de um encontro fortuito de Maluf com o PT. Ambos podem passar a defender um plebiscito para decidir o destino da proposta de reeleição. É uma possibilidade remota, mas o cenário o fascina: "Você teria o Maluf defendendo a consulta ao eleitorado, as diretas-já, e o Fernando Henrique defendendo a decisão pelo Congresso, o colégio eleitoral. Uma incrível inversão do que aconteceu em 1984".
Sem plebiscito, ele não acredita que o presidente já tenha sua reeleição assegurada: "Se o Plano Real entrar em crise, ele já era. Ninguém lembra que o Zagallo ganhou a Copa, mas todo mundo reclama que perdeu a medalha de ouro na Olimpíada".
Sem crise, com uma situação econômica e social como a de hoje, vai-se para a boa briga: "Moeda estável com desemprego, sem realizações, pode não significar muita coisa". Como Maluf nunca atacou a estabilidade da moeda, ele poderia ser uma alternativa de "experiência, realização e pulso firme", contrastando com o estilo "cavalheiresco, porém conciliador de Fernando Henrique". (Vale repetir que os malufistas das classes C e D de São Paulo não querem ouvir falar em programas de renda mínima nem em preço de obras.)
Se a emenda da reeleição cair no Congresso, o tucanato deverá produzir um nome novo. Quem? Duda responde: "Paulo Renato Souza, o ministro da Educação, talvez. Malan não, por causa do Proer. Tasso Jereissati é nordestino e, por causa do Collor, ainda vai demorar muito até que o nordeste faça um novo presidente. José Serra saiu da pista. Jaime Lerner não vai além do Paraná". Nesse caso, acha que a parada é boa para Maluf.
Vitorioso, Duda foi para a Bahia ver briga de galo, pescar (tem dois barcos e uma lancha). Pretende passar pelo menos três meses sem trabalhar. Tem três filhos adultos de um primeiro casamento que durou 13 anos (lembrado pela pulseira de prata que carrega no braço direito) e dois do segundo, que durou dez anos e acabou em abril (o da pulseira de ouro, no mesmo braço). Dele resultaram dois filhos: Lucas, de 6 anos, que perguntava todo dia quando acabava a campanha, e Rafael, de um ano e meio. "Ele deve estar pensando que o pai dele é um telefone."
Acha que será capaz de montar um esquema que lhe permita trabalhar no máximo dez dias por mês: "Eu já vendi apartamento, já vendi produtos (seu comercial do Gelol entrou para a história da publicidade) e agora vendo gente, mas estou cansado de vender".
Pode tentar, mas sabe que enquanto carregar no bolso o último modelo do celular bem-educado da Motorola, aquele que vibra em vez de grasnar, tem a espessura de um maço de cigarros e cabe no bolso da camisa, Paulo Maluf poderá estar do outro lado da linha, chamando-o para uma reunião. O assunto? Ele já sabe.

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