São Paulo, domingo, 17 de novembro de 1996
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MISSÃO E PROFISSÃO

SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA

Ao deixar a atividade regular de crítico literário, há mais de seis anos, eu não imaginava retomá-la algum dia. Preferi por muito tempo conservar-me o que fora sempre, um "bissexto" da crítica, sem mais obrigações e responsabilidades do que escrever em horas vagas sobre livros que ocasionalmente me interessavam. E livros que, a bem dizer, pouco tinham a ver, em sua generalidade, com a literatura, no sentido mais limitado e corrente da palavra.
O próprio desmentido da pura literatura, das "belas letras", pareceu-me não raro participar de algum vício de nossa formação brasileira, que, inábil para denunciar nos outros, tentei frequentemente contrariar em mim mesmo. Refiro-me naturalmente a esse gosto que se detém nas aparências mais estritamente ornamentais da expressão e que tende a conferir aos seus portadores um prestígio estranho à esfera da vida intelectual e artística.
Fiados no poder mágico que a palavra escrita ou recitada ainda conserva em nossos ritos e cerimônias, e que será sempre de interesse para quem se proponha pesquisar o complexo folclore dos civilizados, não faltam os que vêem no "talento", no brilho da forma, na agudeza dos conceitos, na espontaneidade lírica ou declamatória, na facilidade vocabular, na boa cadência dos discursos, na força das imagens, na agilidade do espírito, na virtuosidade e na vivacidade da inteligência, na erudição decorativa, uma espécie de padrão superior de humanidade. Para estes a profissão de escritor -se assim já se pode dizer entre nós- não constitui, em realidade, apenas uma profissão, mas também e sobretudo uma forma de patriciado.
Semelhante ponto de vista, nascido em grande parte do preconceito romântico que conferia ao poeta, ao letrado, ao orador, uma dignidade de exceção, grassou e ainda grassa largamente no Brasil em resultado, talvez, das próprias peculiaridades de nossa formação histórica. As virtudes que hão de representar em grau eminente aqueles privilegiados são as mesmas que se encarnam tradicionalmente nas profissões liberais e em certos empregos públicos: profissões e empregos que não sujam as mãos e não degradam o espírito, por conseguinte se colocam hierarquicamente acima dos ofícios tidos por desprezíveis em uma sociedade oriunda de senhores e escravos.
Ao autêntico escritor, que, sempre de acordo com o mesmo ponto de vista, só o é por uma espécie de dom de nascença, superior a qualquer contingência prosaica ou terrena, competem prerrogativas particulares. Não há dúvida que em nossos dias já se fala com muita insistência nas obrigações e responsabilidades dos intelectuais. A missão que a estes caberia não é um caminho cor-de-rosa e de ouro; ela impõe, ao contrário, deveres próprios e a que nenhum pode fugir sem grande perda de dignidade. Mas quem não percebe que tais "deveres" constituem simplesmente o reverso forçoso, inevitável, e de outros tantos privilégios que só não se proclamam com a mesma ênfase, porque isso não é verdadeiramente preciso, porque todos já os admitem tacitamente e de bom grado?
Essa moderna encarnação da doutrina de que o escritor é uma criatura eleita e em tudo excepcional foi, em certo sentido, reforçada pela predicação de certos teóricos que imaginam ter encontrado súbita e milagrosamente a chave capaz de abrir a porta de todos os mistérios da existência. Para esses simplificadores, os problemas universais podem ser facilmente resolvidos graças a meia dúzia de fórmulas precisas e de meridiana clareza. Se nem todos as podem ver, é que tiveram os olhos vendados, sem dúvida, por mesquinhos interesses de classe, tornando-se, conscientemente ou não, os servos de algum imperialismo implacável. Se o intelectual tem, com efeito, uma sagrada missão a cumprir, será esta de elucidar os que não sabem ver por inocência e denunciar os que não querem ver por conveniência. Para os que assim pensam, todos os escritores hão de mobilizar-se espontaneamente em benefício de alguma causa, e isso em nome da própria dignidade profissional. O patriciado converte-se desse modo em milícia.
Reconhecer o contrário, isto é, reconhecer que a atividade literária e cultural tem seu campo particular, e que em outros domínios ela não é diferente, nem mais eficaz, nem forçosamente melhor do que qualquer outra, não significa pretender fazer das chamadas "elites" da inteligência um clericato displicente e egoísta. É sempre excelente que os homens de boa vontade, e entre eles os escritores, coloquem eventualmente suas capacidades ao serviço de alguma causa de interesse coletivo. E é ainda melhor que cheguem a congregar-se em torno de semelhante causa. Mas para isso não se torna indispensável que falem do alto da torre da dignidade profissional, tão vaidosa e, ao cabo, tão inútil como qualquer torre de marfim.
Não há como negar, em todo caso, que esse novo empenho de valorizar a profissão literária, empenho ambíguo, é certo, e de alvo mais nitidamente político do que intelectual, teve algumas consequências valiosas e plausíveis. Colocado o escritor em face das realidades que antes pareciam indiferentes e mesmo avessas ao seu mundo, ela veio emprestar um vigor novo a tendências que já militavam por dar uma dimensão mais humana às suas atividades. Pode-se dizer que nos dias atuais ele vive menos de sonhos e frases feitas do que há 20 e há 30 anos.
É verdade que o movimento modernista de 1922 já tinha dado alguns passos nesse rumo. Por numerosos aspectos constitui uma inversão meticulosa dos graves padrões formais outrora consagrados. Ao verso alexandrino opuseram-se os ritmos inumeráveis e dissolutos. À solenidade parnasiana, o prosaico, o coloquial, o anedótico. À linguagem rebuscada, o falar simples e rústico. Liberdade, liberdade total e sem limites: esse o slogan permanente dos novos revolucionários. Diante das constrições e artifícios imperantes, não parecia restar, com efeito, mais do que tal alternativa.
Contudo não entraria, por sua vez, nessa palavra de ordem, um novo e talvez malicioso artifício? A genuína, a intolerante opressão, contra a qual se levantavam, não vinha propriamente do rigor, vinha da rotina. A forma severa dos parnasianos, que Manuel Bandeira soube retratar e satirizar nos "Sapos", tinha morrido já havia muitos anos, mas deixara em seu lugar um fantasma: convertera-se em fórmula. O que agora se impunha não era tanto uma liberdade de, como uma liberdade para. Quanto a isso não se iludem, aliás, as figuras mais expressivas do movimento, mas a generalidade deixou de compreender a distinção sutil e, por fim, submeteu-se ao acalanto da palavra mágica.
O grupo de escritores novos que ainda há pouco deliberou reagir contra a herança de 22, e para isso chegou a organizar em São Paulo um Congresso de Poesia, tampouco a compreendeu, e tomou por característico de todo o movimento o que era característico apenas dos seus epígonos secundários, sem dúvida a imensa maioria. Em certo sentido tinham sua razão para isso, porque tomado em bloco o modernismo foi um movimento negativista, e não poderia deixar de sê-lo. O lema orgulhoso que ostentava prestou-se a fatais equívocos e representava, em suma, um simples toque de reunir; não procurou direções ou caminhos. E a liberdade sem rumo pode bem ser a fonte de uma nova rotina, mais perigosa, talvez, do que a antiga, porque de todo irresponsável.
No momento atual em que nada concorre para limitar nossas incertezas, faz-se necessário terreno menos instável. E por isso o simples ideal negativista já proporciona poucos encantos. À complacência distraída das negações, substitui-se, assim, e cada vez mais, a demanda de novas posições. Demanda exigente, sem dúvida, porque para dominar o inesperado faz-se sempre mister uma vontade vigilante e um obstinado rigor. Não é certamente com a simples canonização de tumultuosos delírios da sagrada liberdade, da ignorância criadora, que será dado enfrentá-lo.
Mas justamente o sentido positivo que vai aparentemente empolgando as gerações atuais há de definir-se menos por fins de antemão determinados do que pela maneira de chegar a eles, pois o roteiro que escolheram talvez ainda não esteja nos mapas, e o futuro pode trazer surpresas. A cega adesão às doutrinas salvadoras, não por convicção profunda, mas pelo empenho de fugir às inseguranças do presente, também é fonte de negações. Na órbita da política temos visto como ela conduz frequentemente aos falsos heroísmos, às falsas disciplinas e às grandezas falsas. O mesmo ocorre de algum modo em outros domínios, e não menos nos da cultura e da arte. À base de qualquer alternativa possível para a liberdade imoderada há de encontrar-se invariavelmente um apelo ostensivo ou implícito à despersonalização. Mas não é forçoso que essa despersonalização se exprima na aquiescência a algum código exterior, arbitrário e caprichoso.
Existem também disciplinas intelectuais feitas de modéstia, inquirição metódica e perseverança, que têm sido quase sempre o apanágio ideal do chamado "espírito científico". Até que ponto poderiam incorporar-se a elas os próprios valores da imaginação? Sabemos que no Brasil a deliberação paciente, o trabalho pertinaz e penoso, sem perspectivas de pronto êxito, nunca tiveram suficiente prestígio para se erigirem em virtudes "poéticas". Ou se o tiveram -como no caso dos parnasianos- foi expressamente em função do decoro e do brilho exterior.
Comparado ao que era há seis anos, o panorama de nossa atual literatura já parece comportar melhor aquelas disciplinas. É cedo, talvez, para dizer-se que isso representa mais do que o fruto de influências adventícias e passageiras. Não faltam indícios, contudo, de que poderá significar o ponto de partida de uma orientação nova em nossa vida intelectual, e tão significativa e fecunda quanto o foi o movimento modernista de 22. Orientação que não se limitaria, em verdade, à literatura no sentido estrito, mas procuraria abranger outros setores da atividade espiritual.
Nesse ponto ainda caberia uma referência particular à afinidade que existe indiscutivelmente entre esses novos rumos e a ação que vêm exercendo sobre certas inteligências o método e o ensino universitário, sobretudo o das Faculdades de Filosofia. A eles se deve, em parte considerável, a desconfiança crescente, em toda uma geração de estudiosos, pelo autodidatismo e pelo personalismo exacerbado. Sua vontade deliberada de vivenciar e retificar, se preciso, a sabedoria infusa ou a inspiração sublime, é fato com o qual, daqui por diante, deveremos contar. E fato de algum modo novo em nossa literatura e, em geral, na literatura de língua portuguesa, tão amiga das excitações líricas e das exaltações retóricas.
Ao retomar o ofício de crítico literário, são esses alguns dos sinais de transformação que julgo discernir em nosso horizonte intelectual. Transformação que pretenderei acompanhar daqui, não como um profeta, mas como um monitor ou exortador, nem mesmo como um juiz sempre atento a leis rígidas e inflexíveis, mas antes como uma testemunha de boa-fé, empenhada em bem compreender e bem interpretar.

Texto publicado no jornal "Diário de Notícias" (RJ) em 22 de agosto de 1948.

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