São Paulo, domingo, 17 de novembro de 1996
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Retratos de uma cidade em ebulição

BERNARDO AJZENBERG
SECRETÁRIO DE REDAÇÃO

No início da década de 20, São Paulo já supera o meio milhão de habitantes e é uma cidade em efervescência. Uma nova casa surge a cada duas horas; na indústria em expansão, prolifera uma classe operária "virgem", de composição étnica variada; o modernismo finca suas raízes no terreno cultural.
É nesse cenário -que inclui ainda uma forte carestia, um déficit brutal de serviços públicos e um descontentamento crescente nos meios militares- que a jornalista paulistana Geraldina Marx faz transcorrer seu romance "Os Humildes".
Trata-se, em resumo, da história de amor entre Lola, uma jovem tecelã de sangue espanhol, e Rafael, soldado garboso, filho de italianos, uma história à "Romeu e Julieta", na qual o sentimento tem que levar uma forte batalha para vencer as convenções.
No mais tradicional estilo realista, a autora descreve as idas e vindas desse relacionamento amoroso, traçando como pano de fundo os acontecimentos mais marcantes daquele período na cidade. E o maior valor do livro de Geraldina Marx, 85, está justamente aí, no panorama que oferece ao leitor de uma época de grande ebulição urbana.
Assim, como trabalhadora de uma indústria têxtil, Lola presencia as discussões de seus colegas para a realização de um "movimento paredista" por melhores salários. Em festas típicas da cidade, como a da Virgem da Casaluce, misturam-se pessoas das mais diversas origens. Aparecem as sessões de cinema do cine Mafalda, antiga sala na avenida Rangel Pestana; a Semana de Arte Moderna é comentada pelos jornais; e, assim por diante, até que, ponto culminante do romance, eclode na madrugada de 5 de julho de 1924 a rebelião militar liderada pelo general Isidoro Dias Lopes, produzindo o que em "Serafim Ponte Grande" Oswald de Andrade chama de uma "porrada mestra" na cidade até então pacífica e "do dinheiro a prêmio".
Enquanto Rafael se engaja nas forças "legalistas", Lola e sua família, diante dos constantes bombardeios, são obrigadas a deixar a casa onde moravam. Surge um novo pretendente para a tecelã. E assim vai a história, com um final de tonalidades heróicas e um não-camuflado apelo à emoção.
Segundo relata no prefácio, Geraldina Marx -que publicou um romance em 1944 e outro em 1960- escreveu "há tempos" este "Os Humildes", resolvendo ressuscitá-lo recentemente, "polindo vocábulos e policiando erros". De fato, o sabor de seu texto é o de uma obra realmente redigida "há tempos". Expressões do tipo "macadame", "gramofone", "bonde", a presença de celebridades paulistanas como o aviador Edu Chaves (o "Águia dos Ares") ou o palhaço Piolin, entre tantos outros exemplos, fazem com que o leitor sinta ter à mão um livro forjado, como se diz, "no calor dos acontecimentos".
O destaque, entre os personagens coadjuvantes, fica para o negro Januário, veterano acendedor de lampiões, cuja profissão se extingue com o uso da eletricidade na iluminação pública, mas que nem por isso deixa de tocar seu violino, ler jornais para os outros e recitar poesias, representando uma espécie de fina flor sofrida em meio à guerra e à ignorância.
Às vezes há um exagero quase parnasiano no estilo de Geraldina, como, por exemplo, na frase "o poente fulvo e tardo, de cores esparsas em nuvens alaranjadas, umas e outras violáceas e sangrentas como farrapos esgarçados do céu, tinham em certos momentos fúlgida resplandescência, que esparzia a poeira dourada refletida na ramaria das árvores do Parque Dom Pedro 2º, formando uma renda policrômica e furtacor". Uau!
Mas certamente não é essa a marca do livro, o qual, no seu conjunto, pode ser considerado de uma propositada singeleza e de simplicidade na linguagem. A autora quis trazer para os leitores de hoje um pouco do cheiro, das cores, da atmosfera da São Paulo do início do século -e pronto. Não há dúvida de que conseguiu fazê-lo.

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