São Paulo, domingo, 17 de novembro de 1996
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Ecos da ausência do Estado

ALAIN TOURAINE
ESPECIAL PARA A FOLHA, DE PARIS

Todos os países do mundo foram arrastados pela mutação mundial que substituiu o poder central dos Estados nacionais pela dominação dos mercados mundiais; todos (ou quase todos) transformaram sua política macroeconômica para acomodá-la à nova situação.
A luta contra a inflação, a redução do déficit fiscal, a busca de novas exportações constituíram os imperativos aos quais tivemos de nos adaptar, o mais das vezes com custos sociais muito elevados, tanto nos velhos países industriais da Europa quanto nas novas nações industriais da Ásia e no continente latino-americano como um todo.
Aceitemos tal evolução como um fato que é inútil contestar ou condenar, já que país algum escapou a esta evolução geral e que as referências diretas ou indiretas ao modelo dito socialista caíram por terra.
Em contrapartida, é indispensável nos indagarmos sobre as perspectivas que se abrem a todos os países no momento em que ingressam na época da pós-estabilização. Sobretudo porque seria um erro crasso afirmar que a destruição do antigo sistema de regulação conduz por si só à criação de um novo sistema estável, que poderíamos denominar liberal. Erro que se tornaria catastrófico se pensarmos que a queda dos antigos controles políticos e sociais da vida econômica abriria caminho a uma economia "livre", isto é, desembaraçada de todo controle externo e regulada somente por si própria.
Essa idéia é onipresente: as trocas internacionais e as relações entre as empresas transnacionais tendem a ser reguladas por organismos privados -sociedades de "rating", como Moody's ou Standard and Poor, e escritórios de advocacia situados em Nova York e Londres-, ao passo que as instituições financeiras internacionais como o FMI garantiram seu papel de destaque na fase de estabilização e que o Banco Mundial ou o BID, a exemplo do FMI, assumem atitudes cada vez mais afastadas do que se deve chamar de ilusão liberal, a saber, a crença de que a economia pode funcionar de forma independente do restante da sociedade, ou seja, de maneira selvagem.
Esta ilusão já acarreta saldos extremamente negativos: agrava as desigualdades e a exclusão no interior de cada país e, o que é ainda mais grave, conduz a vida política, despojada de todo controle sobre a economia, a curvar-se à afirmação cada vez mais agressiva da identidade, de forma a reduzir o mundo ao violento embate entre uma economia globalizada, centrada nos países mais poderosos, e um integrismo cultural autoritário, que fala em nome de culturas ameaçadas por essa globalização, cuja aparência é de um novo imperialismo.
Existem hoje em dia três caminhos possíveis para reconstruir as sociedades após a fase de brutal ruptura dos antigos modos de controle político da economia. A primeira desfruta de grande importância prática, mas seu interesse geral é restrito, pois aplica-se de fato apenas a um país, que detém a hegemonia política e militar bem como uma posição dominante na economia mundial: os EUA.
A sociedade americana é fortemente desagregada; as redes financeiras e os meios de comunicação coexistem com a enorme fragmentação cultural e as "políticas de identidade", da qual o "politicamente correto" é a expressão ideológica extrema; não obstante tal sociedade possui uma grande força de integração ligada à consciência de seu papel hegemônico.
No resto do mundo, todos os países são forçados a travar contato com o exterior, ao passo que os Estados Unidos são os únicos capazes de permanecer voltados ao interior, uma vez que a maioria das empresas transnacionais e sobretudo as empresas de "mass media" são norte-americanas.
O segundo caminho é seguido pela maioria dos novos países industriais. Ele associa, de maneira mais ou menos autoritária, uma política econômica liberal a um nacionalismo cultural que pode ter conteúdo religioso, como em muitos países islâmicos, ou restringir-se a uma ideologia de legitimação de um poder autoritário, como no Peru ou, num contexto bem diferente, em Cingapura.
O Japão ocupa aqui uma posição ao mesmo tempo eminente e particular, já que não abriu mão de um projeto nacional, em flagrante contraste à concepção neoliberal dominante nos Estados Unidos.
Recentemente, um importante colóquio sobre o desenvolvimento organizado pelo BID em Washington permitiu avaliar a grande distância que separa a concepção americana, resumida pelo consenso de Washington, cujo principal redator foi o senhor Williamson, e o totalitarismo japonês, admiravelmente apresentado neste congresso pelo senhor Sakukibara, "número 2" do Ministério das Finanças japonês, sustentado por um grupo de "policy-makers" que partilhava sua linha de ação e pensamento.
O terceiro caminho é o mais nebuloso e no qual se misturam mais visivelmente os sucessos e os fracassos. Podemos chamá-lo neo-social-democrata, ou seja, ele dá prioridade às negociações institucionais entre as forças econômicas integradas na globalização e os grupos sociais afetados pela mudança do modo de regulação.
A principal dificuldade aqui é que esta gestão democrática reforça sobretudo a capacidade de resistência dos grupos sociais mais protegidos pelos estatutos profissionais afiançados pelo Estado. Por vezes esta resistência é minada, a exemplo dos sindicatos ingleses ante os golpes da senhora Thatcher ou da CGT argentina diante do Plano Cavallo; por vezes, ao contrário, tais resistências são bastante fortes para bloquear a ação governamental, como pudemos ver na França no outono de 1995.
Para o sucesso de uma política neo-social-democrata, cabe ao governo oferecer à população vantagens concretas que compensem a perda dos proventos adquiridos e a insegurança que aflige várias categorias sociais. Estas vantagens podem ser de dois tipos. Em muitos países, a principal exigência da população refere-se à segurança e à ordem pública, como é o caso específico do Brasil, tanto na cidade quanto no campo.
Apesar da fraqueza dos poderes do governo federal nesse setor, a população exige que o Estado faça respeitar a paz pública e lute contra as formas extremas de desintegração social e violência arbitrária. É dentro desse espírito que vemos também recobrar importância o tema da reforma agrária defendido pelo crescente movimento dos sem-terra. Uma intervenção mais resoluta do Estado, em especial junto à opinião pública, parece necessária.
O outro tipo de vantagens pleiteadas é obviamente de ordem econômica. Este é o principal problema da atualidade na Europa Ocidental. A Alemanha levou a extremos esse tipo de política, a ponto de seus custos salariais serem hoje muito mais elevados do que os dos Estados Unidos ou do Japão. Em toda a Europa ergue-se uma forte pressão para limitar as rendas indiretas e aumentar as rendas diretas capazes de reaquecer o consumo, o que conduz os governos a reforçarem sua ação contra os estatutos profissionais privilegiados, e isso por sua vez provoca uma viva resistência dos assalariados do setor público.
Seja qual for o caminho escolhido, ele não se reduz à "liberação" da economia. Qualquer um dos três confere um papel central ao Estado, às decisões políticas e às relações sociais. Já é tempo, portanto, de nos livrarmos de ideologias superficiais que recomendam a redução e a não-intervenção do Estado e afirmam que o mercado é o melhor agente de alocação de recursos. Existe uma descontinuidade marcante entre a fase de estabilização e a do novo desenvolvimento. As medidas de política macroeconômica tomadas sob a pressão do FMI foram eficazes, se bem que dolorosas, mas hoje fazem parte do passado.
É preciso agora elaborar projetos de natureza pública e privada. A América Latina, como as demais regiões do mundo, ingressa num novo período de sua história. Até o presente, nenhum de seu países, nem mesmo o Chile, foi capaz de implementar um plano global de progresso econômico e social, e tal situação não pode durar. Não se trata mais de livrar a economia de vínculos paralisantes, mas ao contrário de reintegrar a atividade econômica ao conjunto da vida social e reforçar as intervenções do poder político.

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