São Paulo, domingo, 17 de novembro de 1996
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O paradoxo da propaganda intransitiva

NELSON ASCHER
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Um dos fatos que, nas recentes eleições municipais paulistanas, mais inquietaram os setores pensantes foi o do papel crescente, talvez preponderante nelas, da publicidade, que estaria se sobrepondo à discussão político-ideológica. Eles se espantam, por exemplo, diante da constatação de que os usuários de um péssimo sistema de transportes coletivos preferem, contra todas as evidências racionais, eleger para a prefeitura um candidato que enfatiza -sem que se saiba se pode realizá-las- obras viárias que, na melhor das hipóteses, beneficiarão apenas os proprietários de veículos privados.
As críticas às deformações acarretadas pela publicidade eleitoral (por meio da qual se vende um candidato a prefeito como se fosse um produto qualquer de consumo), embora fundamentalmente corretas, parecem insuficientes para dar conta da simples enormidade do paradoxo. Pois mesmo em sociedades melhores do que a nossa, o que ocorre é, em linhas gerais, semelhante.
Nem há como se esperar que, em países voltados para a produção e geralmente descrentes da política, o grosso do know-how publicitário não esteja concentrado na esfera econômica. Ainda assim, o caso brasileiro, exemplificado em São Paulo, está longe de ser normal.
O Brasil conseguiu, como se sabe, efetuar uma das duas ou três piores distribuições de renda do planeta, um feito que resultou numa espécie de divisão tripartite do país: uma elite mínima, uma classe média minguada e frágil e uma imensa massa de despossuídos.
A retórica neoliberal dominante não esconde que qualquer coisa semelhante à economia de mercado só existe concretamente no Brasil de cima. Mas há um -e apenas um- produto cujo consumo é provavelmente mais generalizado aqui do que em qualquer outra parte do mundo: a própria publicidade.
Habitualmente, ela serve aos produtos ao mesmo tempo em que se vende como qualquer um deles. Acontece que, no Primeiro Mundo, ela é subsidiária diante do que vende, ou seja, sua função principal é a de anunciar bens e serviços para um público que, em sua maioria, pode adquiri-los.
Nos países absolutamente pobres ela deve ser tão rara quanto são as mercadorias. Já entre nós, seu contexto e o modo como ocorre reproduzem as deformações do país. Dirigida, em princípio, aos ricos, ela atinge a classe média e praticamente todos os miseráveis. Para os primeiros ela é transitiva e desempenha suas tarefas corriqueiras, enquanto entre os "remediados" ela se traduz no misto de frustração e ressentimento que é o caldo de cultura clássico do fascismo. Chegando ao grosso dos que estão à margem do mercado, porém, ela se torna uma entidade misteriosa, autocentrada e afásica, que se anuncia perpétua e intransitivamente sem ter outro assunto real além dela mesma: a publicidade em si.
Trata-se de um fenômeno original, absolutamente novo. O universo paralelo, de ficção científica, decorrente de sua inter-relação com um público majoritário de não-consumidores é o que gera não só os pretensos "charme", imaginação e criatividade de nossa publicidade (tão superiores, como se diz, à aridez de sua correspondente européia ou americana, que se concentra na divulgação de aspectos palpáveis e/ou mensuráveis do produto) como também a diferença brasileira diante de seu papel na política dos países abastados.
As eleições paulistanas foram em boa parte decididas pela publicidade, só que a massa de eleitores não se compõe -nem mesmo na cidade mais afluente do país- de gente que, persuadida pelos anúncios televisivos, vai ao shopping comprar tal ou qual produto. Presume-se que as pessoas capazes de fazer isso acabem, ao testar no médio ou longo prazo a adequação do anúncio ao produto, desconfiando da publicidade em geral. O que sucede entre nós, porém, é muito pior. E a propaganda malufista parece ter descoberto instintivamente que, para seu público principal, a idéia de adequação entre publicidade e produto não existe. O que está em jogo, portanto, é algo distinto: a maioria dos eleitores em questão está habituada a julgar não o produto, mas somente o anúncio.
Daí, novamente, a genialidade intuitiva da campanha malufista: como os eleitores em sua maioria estão acostumados apenas a ver -e não a usar- os produtos de que fala a publicidade, eles tendem instintivamente a escolher não serviços que apesar de essenciais são quase invisíveis, mas antes obras públicas explícitas e, entre essas, não tanto o metrô -um sistema de galerias subterrâneas cujo conjunto dificilmente é visualizável- quanto, por mais hipotético que seja (porque isso pouco lhes importa), algo muito mais tridimensional e fotogênico: o "fura-fila".
A campanha malufista, além do mais, intuiu corretamente que certos mitos nacionais também trabalham a favor do que quer que se assemelhe a viadutos, vias expressas etc.: o arquétipo solar de um país que disporia de imensos espaços verticais e horizontais a serem ocupados ou colonizados, a idéia de uma cidade que pretende "arranhar os céus" com suas edificações; o equívoco de se imaginar que o espaço urbano pertence igualmente a todos; e a consequente resistência, por parte da massa despossuída, a ser confinada às catacumbas metroviárias.
Nesse quadro, é inteiramente plausível que um eleitor pobre demais para comprar qualquer veículo, mas exposto o tempo todo a comerciais, outdoors e anúncios de automóveis, vote não num candidato que proponha melhorias ou serviços factíveis e necessários, mas sim numa campanha que, associando-se complementar e parasitariamente à publicidade comercial, anuncie obras virtuais destinadas a facilitar a circulação dos carros que ele não tem nem terá jamais.

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