São Paulo, domingo, 17 de novembro de 1996
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O usurário revisitado

MOACYR SCLIAR
ESPECIAL PARA A FOLHA

Não há autor a quem eu despreze tanto, disse Bernard Shaw. Causa-me irresistível repulsão e tédio, resmungou Tolstói. De quem falavam, os ilustres escritores? A quem se dirigia sua fúria?
Por incrível que pareça, era de William Shakespeare que falavam. Mas suas diatribes não encontraram eco: passados mais de três séculos e meio de sua morte, ocorrida em 1623, a aura que cerca o Bardo brilha mais que nunca. Não apenas as suas peças estão nos palcos do mundo inteiro, como são imensas as multidões que se dirigem à sua cidade natal, Stratford-upon-Avon, pólo de um lucrativo turismo shakespeariano; mais que isto, o Globe Theatre, histórico cenário de suas obras, acaba de ser reconstruído e também já é atração turística, em Londres.
O sangue dos cristãos
Este ano marca o quarto centenário de "O Mercador de Veneza" (datas são muitas vezes incertas na cronologia de Shakespeare, mas parece certo que, pelo menos, ele começou a escrever a peça em 1596 -um ano que, como já se verá, foi muito importante em sua vida). E quando falamos na peça estamos em realidade falando sobre o seu personagem principal, o usurário judeu Shylock, figura ainda mais paradigmática que o torturado Hamlet, a pérfida Lady Macbeth ou o ciumento Othelo.
A história pode ser assim resumida. Bassanio pede a seu amigo, o mercador Antonio (ao contrário do que pensa a maioria das pessoas, é ele o mercador de Veneza, não Shylock) dinheiro para conquistar Portia. Antonio pede um empréstimo a Shylock, que concorda, mas exige uma garantia: uma libra de carne do devedor. Arruinado pelo naufrágio de um de seus navios, Antonio é levado ao tribunal por Shylock. No julgamento, Portia, disfarçada de advogado, diz que Shylock pode cortar a libra de carne, mas lembra que é proibido aos judeus derramar sangue de cristãos. O duque perdoa Shylock com a condição de que ele se converta e que divida seu dinheiro com a filha Jessica, apaixonada pelo cristão Lorenzo.
O Leitmotiv da peça é, evidentemente, a usura judaica. Não chega a ser novidade; outras obras abordavam o mesmo tema, notadamente "O Judeu de Malta", de Christopher Marlowe, contemporâneo de Shakespeare. Não se tratava de situação imaginária; ao longo de toda a Idade Média, a usura tinha, realmente, sido atribuída aos judeus, graças a um engenhoso, e perverso, mecanismo religioso-econômico. Como no Velho Testamento, o empréstimo de dinheiro a juros era condenado pelo cristianismo e tinha sido formalmente proibido pelo Terceiro Concílio de Latrão (1179). Mas os reis e nobres necessitavam de dinheiro: para a guerra, para as despesas de governo e de administração, para a aquisição de bens. A delegação da usura aos judeus solucionava o impasse: em caso de inadimplência, reis e nobres não se sentiam obrigados a saldar dívidas. Podiam promover o massacre dos judeus, usando as antigas acusações de assassinato ritual ou de envenenamento dos poços. O risco para os judeus era tanto maior porque recebiam em garantia terras, castelos, propriedades e até -no caso de um empréstimo feito ao bispo Nigel- os sagrados despojos de um santo.
A grotesca garantia
Shylock não era um banqueiro. Não tinha tal status; ao contrário, era uma figura desprezível. Mas esta figura desprezível tem um momento de inaudita dignidade: ele quer -à sua maneira- justiça, ele exige um julgamento do devedor e, no tribunal, faz um extraordinário desabafo: Antonio desgraçou-o e humilhou-o por ser ele judeu. Mas um judeu é um ser humano: "Os judeus não tem olhos? Os judeus não têm mãos, dimensões, sentidos, inclinações, paixões? Não ingerem os mesmos alimentos, não se ferem com as mesmas armas, não estão sujeitos às mesmas doenças, não se curam com os mesmos remédios, não estão sujeitos ao calor do verão e ao frio do inverno da mesma forma do que os cristãos? Se vocês nos ferem, nós não sangramos?".
Na classificação das obras de Shakespeare, "O Mercador de Veneza" recebe o rótulo de comédia. Mas a passagem acima dificilmente pode ser considerada engraçada. O que temos aí é a desesperada queixa de um ser humano. Que Shakespeare talvez entendesse melhor do que se supõe. Como Shylock, ele não desprezava o dinheiro. Ao contrário, sabemos que ele era um hábil especulador; não poucas foram as propriedades que adquiriu em Stratford. Mas 1596 foi doloroso para ele; foi este o ano em que morreu, ainda criança, Hamnet, seu único filho homem. O sofrimento de Shylock, ainda que resultante de outras causas, não lhe seria de todo estranho. Sofrimento que poderia explicar também a grotesca garantia exigida pelo usurário; é carne que ele quer, é a própria substância de que é feito Antonio, a sua concreta humanidade. Mas isto não aparece na peça. O que aparece é o castigo do usurário.
Suposições à parte, ocultas intenções à parte, o que restou da peça foi uma mensagem anti-semita, repetida à saciedade através dos tempos e mais recentemente na Alemanha nazista. O grito de Shylock ainda ecoa; como os gritos das vítimas dos campos de concentração, fala de seres humanos acuados pela intolerância e pela prepotência. Seria cômico, se não fosse trágico.

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