São Paulo, domingo, 17 de novembro de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Gutenberg busca 'democracia'

JOSÉ LUIZ SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

O Gutenberg foi criado em 1971, quando o americano Michael Hart ganhou um crédito de US$ 100 mil em tempo de acesso ao servidor Xerox Sigma 5º do Laboratório de Pesquisa de Materiais da Universidade de Illinois.
Hart digitou a Declaração de Independência dos EUA e a distribuiu em redes de computador -junto com o pedido de voluntários para a tarefa de dispor 10.000 obras a 100 milhões de usuários até 2001. O nome do projeto é uma homenagem ao alemão Johann Gutenberg (1398-1468), inventor da imprensa e o primeiro a fazer a impressão mecânica de um livro -50 cópias da Bíblia.
O Gutenberg é hoje uma comunidade virtual. Tem 750 voluntários e 672 textos -100 milhões de palavras. O texto 672 é "O Guia Secreto aos Computadores". Há a pretensão de fazer 800 livros em 1997. Todas as obras são de domínio público.
Os textos são escaneados ou digitados. Todos são corrigidos com verificadores eletrônicos de ortografia e comparados a edições impressas, além de estarem disponíveis numa linguagem que 95% dos computadores atuais entendem, a ASCII (American Standard Code for Information Interchange), em que itálicos, sublinhados e negritos são capitalizados.
As edições do Gutenberg pretendem ser 99% "corretas" em relação aos originais. Hart dá prioridade à digitação e não à edição de versões oficiais de textos. Há obras nas principais línguas modernas. Elas são divididas em "literatura leve", como "Alice no País das Maravilhas", "O Mágico de Oz" e "Peter Pan"; "literatura pesada", como a Bíblia, as obras de Shakespeare e "Moby Dick", de Herman Melville; e "de referência", como almanaques, enciclopédias e dicionários. Todas podem ser encontradas no site do Gutenberg ou no The Project Gutenberg CD-ROM.
O Gutenberg não tem patrocinadores, nem custos. Ainda para 1996, está prevista sua associação com a Universidade de Illinois ou com a Universidade Beneditina. "Mesmo tendo alcançado uma boa parte de meus objetivos e muitos '15 minutos de fama'", diz Hart, "ainda não há ninguém querendo financiar os esforços que fiz com o Projeto Gutenberg".
Para Hart, os provedores atuais de bibliotecas eletrônicas não são democráticos, como possam parecer. Eles limitam-se a certos assuntos e utilizam códigos de digitação e transmissão de dados estreitos, que nem todos os computadores podem entender, com o objetivo de controlar a reprodução de suas informações. "Os provedores atuais são intencionalmente feitos para manter os 'ricos em informação' e os 'pobres em informação' nos seus lugares", disse Hart à Folha, por correio eletrônico.
*
Folha - O que pode mudar nas sociedades atuais com as bibliotecas eletrônicas?
Hart - A mais importante consequência social deve ser a criação de um "campo de atuação" para a educação. Lutamos contra a ignorância e o analfabetismo. Nos EUA, 47% dos adultos são tão iletrados que não poderiam ler esta mensagem. Uma biblioteca eletrônica pode aumentar bastante as horas gastas com estudos. Pode reduzir o tempo hoje gasto em pesquisas bibliográficas a 10% e deixar 90% desse tempo para o pensamento. Eliminará a vida curta dos livros, a falta deles, a perda de tempo com a busca de citações etc. E deixará os esforços principais para o "filé mignon".
Folha - Quantas pessoas já utilizaram textos eletrônicos do Gutenberg?
Hart - Não sei. O esforço de contar seria tão grande a ponto de reduzir substancialmente o número de livros que fazemos. Não nos importamos com o número de pessoas que pegam os nossos textos, desde que elas o façam o máximo possível. Muitos provedores limitam o acesso a um só ponto, de modo a que possam marcar quantos acessos as suas páginas tiveram. Assim como provêm seus livros capítulo por capítulo, poema por poema, fábula por fábula, também para marcar mais acessos. Achamos isso contraproducente. É mais importante prover livros a uma base de acesso grande que não pode ser quantificada do que a uma limitada, que pode.
Folha - O que motiva esses provedores?
Hart - Muitos desses esforços são intencionalmente feitos para manter os "ricos em informação" e os "pobres em informação" nos seus devidos lugares. Usam códigos estranhos para manter a ralé longe da piscina intelectual.
Folha - Como o senhor vê as outras bibliotecas eletrônicas?
Hart - De modo geral, penso que os outros projetos de bibliotecas eletrônicas são muito limitados em seus objetivos. Eles querem ser o único lugar onde se possa pegar textos eletrônicos. Nós queremos que nossos textos eletrônicos sejam de todos. Eles querem que seus textos eletrônicos sejam muito limitados: um autor, um assunto, uma cultura, uma linguagem etc. Eles habitualmente se apresentam em alguma linguagem que imediatamente reduz sua audiência potencial aos poucos por cento que estão no topo, aos que já são ricos em informação. Há outros esforços como o nosso. Alguns são pequenos e não sabemos se ainda existem. Eu gostaria que existisse algum esforço sério por parte de qualquer instituição educacional ou filantrópica ou de qualquer governo que tornasse nosso pequeno esforço vão por comparação.
Folha - Como o senhor lida com o direito autoral das obras colocadas em redes?
Hart - Vemos o direito autoral como uma moeda de dois lados. O domínio público é a maior propriedade que as pessoas têm para enriquecer suas mentes. E a mente é uma coisa terrível de se perder. Mas leis e projetos de leis recentes na Inglaterra, na Alemanha, na Itália e nos EUA estão destruindo o domínio público. Milhões de livros -para não dizer jornais, revistas etc- são perdidos do domínio público toda vez que um direito autoral é prolongado. Há um sério movimento para tornar o direito autoral permanente.
Já são muitas as "eras de informação" destruídas pelo direito autoral. A imprensa de Gutenberg gerou a primeira era, em 1710. As prensas elétricas e a vapor a segunda, em 1909. As máquinas Xerox a terceira, em 1976. E a Internet está gerando a quarta.
Folha - Qual sua idéia para o direito autoral?
Hart - Terminar o direito autoral quando a figura matemática de vendas indicar que 95% das cópias de algo que está sendo vendido tenha sido vendida, com um máximo de 10 ou 20 anos.

Texto Anterior: Toda a memória do mundo
Próximo Texto: GLOSSÁRIO
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.