São Paulo, domingo, 17 de novembro de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Manuais ilustram Guerra Fria na América Latina

JORGE CASTAÑEDA

As revelações sobre os manuais de treinamento da Escola das Américas, onde desde 1946 mais de 60 mil militares, policiais e agentes de inteligência latino-americanos foram treinados por colegas norte-americanos, são ao mesmo tempo odiosas e sintomáticas.
Os sete manuais entregues à imprensa pelo próprio Pentágono recomendam o uso de tortura, execuções, chantagem e a detenção de familiares de suspeitos como técnicas de interrogatório.
A divulgação dessas práticas "educativas" ilustra como foi travada a Guerra Fria na América Latina. Também oferece uma grande oportunidade de abrir os armários e esgotos onde jazem os cadáveres do confronto leste-oeste que devastou sociedades inteiras.
A escola, originalmente situada no Panamá e hoje localizada no Estado da Geórgia (sul dos EUA), conquistou fama -que, hoje, constata-se ser merecida- de ser o centro de instrução do qual emanavam algumas das táticas mais nefastas do vasto repertório de iniquidades das instituições militares do hemisfério.
Hoje sabemos com certeza absoluta que até 1991 as Forças Armadas dos EUA recomendavam aos latino-americanos que utilizassem métodos como "infundir medo, pagar recompensas por inimigos mortos, falsas prisões, execuções e o uso do soro da verdade".
Segundo o Departamento de Defesa dos EUA, as 21 seções impróprias das mais de mil páginas foram retiradas do manual a partir de 1992; é de se supor, portanto, que as outras páginas não contenham semelhantes barbaridades.
Mesmo essa afirmação do governo americano, porém, deve ser vista com cautela e suscita algum ceticismo.
De acordo com cópia de exame da Escola das Américas obtida pelo jornal mexicano "La Jornada" em 1994 -ou seja, dois anos depois que, supostamente, se teria posto fim a esses usos e costumes-, uma das perguntas dizia:
"Depois de vários dias de combates intensos e muitas baixas, seu pelotão capturou dois soldados inimigos. O chefe do pelotão lhe dá a seguinte ordem: encarregue-se dos prisioneiros. O sr. deve: a) cumprir a ordem e matar os prisioneiros; b) desobedecer a ordem, já que não ficou claro o que lhe foi pedido; c) pedir ao chefe do pelotão que lhe explique o que quer dizer; d) cumprir a ordem e denunciar a ação ao comandante".
Questionado sobre qual era a resposta correta, um porta-voz da Escola das Américas respondeu "nenhuma das quatro". Mas essa opção não aparecia entre as alternativas.
Durante anos a região assistiu a um diálogo de surdos. A esquerda latino-americana e muitos de seus amigos e simpatizantes nos EUA acusavam Washington de todas as infâmias que se podia imaginar. Iam e vinham acusações de desestabilização, conspiração, torturas, intervenções e manipulações propagandísticas da pior espécie, provas, todas elas, da maldade intrínseca e infinita do "colosso do norte".
Os defensores do império, por sua vez, argumentavam que as acusações eram pura e simplesmente falsas, produtos de imaginações febris e teorias conspiratórias doentias, ou então que encerravam uma dose de verdade inevitável.
Diziam que para tudo é preciso pagar um custo e que, para manter o comunismo internacional afastado da região, era preciso recorrer a parceiros incômodos ou desagradáveis e, às vezes, às táticas reprováveis do próprio inimigo.
Era difícil distinguir qual era a verdade, pois os que a conheciam se negavam a falar, e os que falavam geralmente a desconheciam.
Mas a Guerra Fria terminou. Os arquivos de Moscou, Praga e Berlim foram abertos, e já é tempo dos arquivos de Washington também começarem a vir a público.
Não há dúvida quanto aos casos mais importantes: a derrubada, pela CIA, do governo do presidente Arbenz, na Guatemala, em 1954; a praia Girón (na baía dos Porcos, em 1961) e as repetidas tentativas de derrubar o governo de Fidel Castro, em Cuba; o golpe militar contra o presidente João Goulart, no Brasil, em 1964; a invasão norte-americana da República Dominicana, em 1965; as tentativas de desestabilização e o ataque ao presidente Salvador Allende, no Chile, entre 1970 e 1973; as guerras sujas e os golpes de Estado na Argentina e no Uruguai, no início e em meados dos anos 70; as guerras de contra-insurgência na Nicarágua, em El Salvador e na Guatemala, nos anos 80; e os sucessivos resgates do regime do PRI no México, em 1976, 1982, 1987-88 e 1995.
Algumas dessas situações foram parcialmente investigadas, graças, por exemplo, às deliberações da comissão Church do Senado norte-americano, no tocante à questão chilena, e depois das investigações em torno do assassinato de Kennedy, no caso cubano.
Também nesses casos, porém, o poder executivo dos EUA se opôs intensamente às investigações. Por essa razão, muitos dos documentos continuam em sigilo, e muitos dos depoimentos simplesmente não foram obtidos.
No ano passado a CIA, por meio de seu Centro para o Estudo da Inteligência, se comprometeu a divulgar este ano toda a documentação existente sobre os casos da Guatemala e da baía das Porcos, mas ainda estamos esperando.
Pedidos de acesso às informações sobre a vida, as viagens e a morte de Che Guevara, por exemplo, foram rechaçados: "A CIA não pode confirmar nem desmentir a existência ou inexistência de qualquer documento mencionado em seu pedido".
Na realidade, não há mais razão nenhuma que justifique que se mantenha esse véu encobrindo o passado. É evidente que algumas perfídias e iniquidades dos Estados Unidos fossem realçadas num contexto de grande transparência e abertura; outras supostas iniquidades seriam desmentidas por fatos historicamente comprovados.
Quase não existem mais fontes a proteger nem batalhas a serem ganhas. É certo que ainda restam reputações a ser defendidas e muitos mitos que se negam a desaparecer.
Mas, além do prazer perverso de negar a seus críticos a satisfação de saber que em alguns casos tiveram razão, não é fácil compreender o que o atual governo dos Estados Unidos ainda tem a esconder.
Compreende-se menos ainda porque os decretos e ordens da administração Clinton no sentido de que os arquivos sejam abertos rapidamente ainda não foram obedecidos.
Será que os EUA realmente desejam equiparar-se à Cuba de Fidel Castro, como o único outro sobrevivente da Guerra Fria que guarda seus segredos com tanto zelo?

Tradução de Clara Allain

Texto Anterior: Minoria quer recompensa de Clinton
Próximo Texto: Ricos não conhecem a fome, afirma Fidel
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.