São Paulo, domingo, 17 de novembro de 1996
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O impossível na política

HERBERT DE SOUZA

Está na moda falar da política do possível como uma virtude, e do impossível como uma forma de utopia idiota. Afirma-se que a globalização (leia-se capitalismo mundial) reina no mundo de forma definitiva e inevitável. A política do possível é aceitar esse fato. O inteligente, agora, é render-se às evidências da moda. O impossível é mudar esse juízo categórico, à Kant: uma perda de tempo, tarefa de ociosos e iludidos.
Nesses termos, a escravidão teria sido inevitável nos tempos coloniais. O negócio teria sido aceitar a escravidão e tentar mostrar um lado da face, o humanizado. A corrupção na política também é inevitável. A questão, portanto, é fazer o possível para domesticá-la e deixar a "ética na política" para os militantes de esquerda, padres, pastores e rabinos. Só se deve fazer o possível, o resto é supérfluo.
Seguindo esse raciocínio, não se pode erguer a bandeira do fim da miséria porque é impossível consegui-lo. A resignação passa a ser salutar para a boa política, os utópicos fazem mal e devem ser evitados. O Ministério da Saúde deveria informar: utopia faz mal à saúde social.
Por outro lado, pensar e fazer simplesmente o possível é cuidar, apenas com panos quentes, de uma sociedade gravemente ferida. Ser utópico é admitir que a solução de alguns problemas vai além do que é possível ser feito.
Não tentar o impossível é ter a certeza de que todos esses problemas continuarão existindo, com a garantia de que todo o possível foi feito, em vão. Resignar-se significa agrupar sob o mesmo rótulo de supérfluo tudo aquilo que foge ao possível. De acordo com essa lógica, fome, violência, reforma agrária e desemprego seriam assuntos descartáveis.
Mas a história mostra que o impossível acontece, principalmente na política. Foi assim com Gandhi, Ho Chi Minh, foi assim na revolução cubana contra Baptista. Quem diria que o impeachment de Collor seria possível? Ninguém, e, no entanto, aconteceu, contra todas as evidências e previsões. Quem diria que um movimento pela ética na política pudesse ganhar os corações e mentes de milhões, a ponto de mover o Congresso, que havia dormido lado a lado com a corrupção por muito tempo, tendo na cama os anões do orçamento? E aconteceu.
Quem diria que a anistia seria possível em plena ditadura militar? Que as Diretas Já poderiam emplacar? Que a Constituição de 88 pudesse acontecer com a participação direta de pelo menos 15 milhões de brasileiros e brasileiras? Que as administrações municipais viriam a ser o aspecto mais importante da política contemporânea, a ponto de mobilizar nas últimas eleições tanta energia? Que o movimento dos sem terra poderia estar na novela das oito? No entanto, a maioria presenciou ou participou de pelo menos um desses acontecimentos "impossíveis".
Onde está a prova de que isso não poderia -e ainda pode- ser realizado? Falta base concreta para a tese de que a política é a arte do possível, argumento usado por todos aqueles que se recusam a tentar o impossível para ficar de bem com o status quo e dormir tranquilos ao lado da miséria, da fome, do desemprego, das Bósnias, das guerras, da violência e da globalização inevitável.
Contrária ao conformismo desse argumento, a sociedade vem provando, por meio da sua capacidade de mobilização e expressão, que está disposta a romper com todos os conceitos, situações, pessoas ou atitudes que impeçam a conquista dos seus direitos fundamentais.
Independentemente da discussão teórica sobre o possível ou o impossível na política, a sociedade sabe bem o que quer e do que precisa. Milhares de pessoas nas ruas por uma mesma causa e a queda de um presidente acusado de corrupção não são devaneios de esquerdistas utópicos nem notícias sobre um país distante. São fatos muito próximos, que remontam a um passado recente e real na vida de cada um.
Sejamos os utópicos, os diferentes, os fora de moda, mas sejamos também ousados e capazes. É preciso quebrar o gelo diante de problemas graves que, de tão comuns, teimam em parecer normais. Indignar-se é o primeiro passo. Acreditar na realização do impossível e não se deixar curvar diante de previsões pessimistas podem ser os próximos no caminho rumo às mudanças.
Enquanto o Titanic ainda flutua, tentemos o impossível para mudar o seu curso: afinal, quem faz história são as pessoas e não o contrário. Mas, para isso, é necessário sempre tentar o impossível, já que o possível, de todo jeito, acontecerá.

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