São Paulo, domingo, 24 de novembro de 1996
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Programas alimentam culto à adolescência

FERNANDO DE BARROS E SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Em nenhuma outra época o culto à adolescência, o infantilismo e a puerilidade foram tão definidores de uma cultura como o são hoje.
Até no mundo insípido do trabalho resplandecem os traços mais regressivos da primeira infância. O protótipo do executivo de nossos dias, o jovem recém-saído da universidade que aprende rapidamente a operar no mercado financeiro, movimenta milhões de dólares a partir de seu computador como se estivesse em casa, com uma chupeta pendurada no pescoço, apertando irresponsavelmente as teclas de seu videogame.
Mas, assim como o jovem mauricinho trabalha como quem brinca, fazendo e desfazendo fortunas como se erguesse e destruísse castelos na areia, os adolescentes, enquanto aguardam para ingressar no mercado de trabalho, também brincam de imitar gente grande.
O "Programa Livre", de Serginho Groisman, e o "Barraco MTV", de Astrid Fontenelle, são os dois programas da TV brasileira que levam a juventude "a sério".
Em princípio não são programas nem mais nem menos adultos que os demais. Afinal, de Faustão a Hebe, passando pelas novelas, toda a TV parece bem adaptada à mentalidade de berçário da cultura de massa.
O que diferencia esses programas são os seus cacoetes tribais, a partir dos quais aqueles a quem são destinados se identificam e se reconhecem como grupo.
A profusão de gírias funciona para demarcar fronteiras. Só entra ali quem já sabe o que significa que tal assunto "pode dar o maior barraco" ou quem não se espanta quando o apresentador diz enfaticamente "fala, garoto", mesmo sabendo que o tal garoto não tem nada para falar.
A simpatia que ambos os programas despertam vem do fato de se colocarem como herdeiros dos anos 60, da contracultura, da idéia de que os jovens são espontaneamente críticos, rebeldes, incompreendidos. Sobrevivem nesses programas os clichês do mal-estar, da convulsão interna, da inquietação e da fúria adolescentes.
O problema todo é que falta referente na realidade para tanta demanda interior. Tudo o que havia de supostamente libertário na contracultura foi devidamente assimilado pelo mundo do consumo. Restou como saldo uma espécie de analfabetismo sem superego, uma necessidade de expansão de egos embalados a vácuo. É essa herança que esses programas recolhem e amplificam.
Outro dia o "Programa Livre" recebeu o grupo Sepultura, que é, obviamente, um caso extremo de demência, mas cujo sucesso planetário basta para tomá-lo não como exceção, mas sintoma dos tempos.
Idolatrados pelo público presente, aqueles senhores desagradáveis, sujos e horrorosos não sabiam falar. Comunicavam-se por monossílabas, interjeições incompreensíveis e outros ruídos estranhos. Sua música conseguia ser ainda pior do que eles próprios. Onde então a rebeldia, o protesto, a subversão? Não fazem eles exatamente o que deles espera esse mundo doente de terno e gravata ao qual pretendem se opor?
O desrecalque, a vociferação, a selvageria são o outro lado da moeda, a contrapartida funcional da pseudo-racionalidade dos que aprenderam a brincar de fazer fortuna no cassino financeiro de nossos dias. Num caso como no outro, são todos "crianças como você".

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