São Paulo, quinta-feira, 28 de novembro de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Caipirândia, Caipíria

OTAVIO FRIAS FILHO

Há caipiras e caipiras. Essa distinção foi feita quando o presidente brasileiro, parisiense incorrigível, qualificou os seus conterrâneos de caipiras para agradar um interlocutor português. Mas há um aspecto que não foi ressaltado o suficiente: o Brasil é caipira também no sentido em que a Rússia ou a China o são.
São países de tal modo monstruosos na sua massa demográfica, territorial, linguística, que na prática constituem um mundo à parte. Bastam-se porque são atrasados, não há dúvida, mas também porque se bastam mesmo, suas proporções desafiam qualquer esforço, consomem os sonhos, diluem as invasões.
China e Rússia têm uma cultura própria, integrada, num grau muito mais elevado do que nós. Por isso mesmo a caipirice brasileira é um contrapeso até certo ponto vantajoso, uma defesa contra os excessos de permeabilidade de uma cultura tão porosa e voltada para o exterior como é, desde sua formação, a nossa.
A classe média renunciou a qualquer identidade nacional, ela se declarou área franca satelizada por sua equivalente norte-americana. Um mínimo de defesa daquela massa autóctone e ainda em evolução depende agora exclusivamente do Brasil popular, oculto, caipira: cabe a ele impedir que nos tornemos um Panamá.

Imaginava-se que o "Festival de Besteiras que Assola o País", clássico do cronista Stanislaw Ponte Preta, estivesse tão extinto quanto a Arena ou a Marcha da Família que ele se deliciou com ridicularizar. Para provar que não, bastou reunir um padre fanático, um promotor ocioso e a cidade paulista de Araraquara.
Numa homenagem à sua terra natal (e da primeira-dama, aliás), o diretor Zé Celso Martinez Corrêa levou à cidade o espetáculo "Mistérios Gozosos", texto de Oswald de Andrade. A peça fez carreira normal em São Paulo e assim teria sido em Araraquara, um centro universitário, não fosse o faniquito do sacerdote.
Ele encasquetou que determinada cena era "ofensiva" à religião, como se nesse caso a peça inteira -uma paródia perversa da paixão de Cristo- não o fosse. Instado a escolher entre um processo ou prestar serviços à comunidade, o diretor ponderou, com razão e humor, que não tem feito outra coisa nas últimas décadas.
Com que autoridade vem a religião se meter com os rituais do teatro, mais venerandos que os de qualquer culto, tão sagrados quanto os dela? Será que ainda é preciso explicar que o teatro é o mais livre dos lugares porque ali a humanidade se reserva o direito de se ver sem disfarces, nos seus extremos mais vis ou vãos?
Quem merecia ser processado era o padre, por ameaçar a já precária comunicação do homem com seu semelhante. Se o crime do grupo Oficina é de lesa-religião, o desse Tartufo caipira é de lesa-humanidade. Vergonha sobre Araraquara, cidade esclarecida que num dia mais feliz chegou a acolher o próprio Sartre.

Texto Anterior: Dar e tomar
Próximo Texto: O Estado do século 21
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.