São Paulo, segunda-feira, 2 de dezembro de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Nudez não traduz atualidade de 'Xica da Silva'

ESTHER HAMBURGER
ESPECIAL PARA A FOLHA

Xica da Silva é mais uma personagem de uma longa galeria de mulheres fortes e ambíguas, a um só tempo puras e devassas, agentes de liberação política e dos costumes, vindas da literatura ou do teatro, que se realizam plenamente no universo das telenovelas.
Na linha de Gabriela, Tieta e Porcina, Xica é portadora de uma modernidade liberalizante. E nessa função cabem muitos significados.
O grau de liberdade narrativa com que o roteiro se permite introduzir temáticas da atualidade em uma história que problematiza o passado escravocrata é curioso.
A novela engata o homossexualismo, problemática típica do final do século 20, no melodrama abolicionista. É com uma bondade ousada que Xica, geniosa e generosa, presenteia seu amigo gay branco, Zé Maria, com um escravo negro.
Diante dos protestos do amigo que alega sonhar com um amor espontâneo, ela, rainha imponente, ordena que ele conquiste uma versão masculina da mucama.
Diante da profusão de temas picantes, as anunciadas cenas de nudez de Taís Araújo na quinta estão entre as mais fracas da semana.
A sequência em que Xica se despe, dança e mergulha no rio, pura natureza, em exibição involuntária para o deleite do contratador, não combina bem com o resto da narrativa. O uso do flashback acentuou o artificialismo.
Apesar da fama da emissora e do horário, até aqui "Xica da Silva" tem sido uma novela de poucos beijos, seios ou cenas de sexo. Talvez exclusivamente por mérito da ameaça do Juizado de Menores.
Com todo esse recato, a novela tem atingido bons índices de audiência. E ao menos em um primeiro momento a nudez não trouxe mais espectadores -o Ibope diminuiu durante a cena.
O brinde erótico serviu mais para chamar a atenção sobre a trama em um momento especialmente tenso da narrativa. Xica é acusada de feitiçaria e está ameaçada de ir parar na fogueira.
Os atos canibalescos de evocação do demônio com uso de sangue humano, a tortura sangrenta do escravo Mandinga e as referências didáticas aos Orixás impressionam muito mais.
Há sintonia entre a postura altiva de Xica e a de Benedita da Silva diante da retratação pública do empresário branco no "Jornal Nacional". Há sintonia entre os demônios da história e os espetáculos esotéricos oferecidos por correntes religiosas contemporâneas.
Personagem do passado, Xica mobiliza a um tempo as raízes de nossa saga e o pastiche cultural e religioso do final do século. Quanto ao futuro, a Deus pertence.

Texto Anterior: Filhos da Natureza
Próximo Texto: Anjo bom; União; Recheio
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.