São Paulo, domingo, 8 de dezembro de 1996
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A crise anunciada das autopeças

LUÍS NASSIF

Os antecedentes e as consequências do acordo automotivo talvez se constituam no exemplo mais acabado dos malefícios trazidos ao país pela falta de uma burocracia estável, capaz de pensar a política industrial de maneira lógica e continuada -independentemente dos humores dos governantes de plantão.
Confira-se a novela.
Movimento 1 - A abertura econômica do governo Collor foi conduzida por pessoas do ramo, com conhecimento da cadeia industrial. Anunciou-se um programa de redução de alíquotas de importação, feito de maneira lógica para não desequilibrar a cadeira produtiva.
Depois, um programa de quatro anos, com reduções sucessivas das alíquotas, dando tempo para os setores se ajustarem.
Tudo isso obedecia a uma lógica que tinha dois objetivos básicos: abrir a economia, sim, mas tendo por objetivo o fortalecimento das empresas já instaladas, por meio da competição e da possibilidade de buscar parceiros, tecnologias e insumos no exterior.
Movimento 2 - Cai Collor. Têm início as negociações em torno do Mercosul, e a política industrial sai das mãos da área econômica para as do Itamarati.
O Brasil tinha uma indústria automobilística e um setor de autopeças sensivelmente maior que o da Argentina. O acordo previa que deveria ocorrer equilíbrio comercial no setor automotivo, e não na balança comercial como um todo.
Para empatar a balança comercial automotiva, restava às montadoras e autopeças levarem suas empresas para lá, beneficiando-se da isenção nas exportações para o Brasil.
O processo foi acelerado pelo fato de a Argentina já ter avançado na redução do chamado "custo Argentina".
Movimento 3 - No meio do caminho, no quarto trimestre de 1994, o então ministro Ciro Gomes e a equipe econômica dão início a uma série enorme de atos temerários, da apreciação do câmbio à ampla abertura às importações, culminando com a redução das alíquotas de importação dos automóveis de 35% para 20%. O movimento 1 tinha sido definitivamente atropelado.
Movimento 4 - Entraram US$ 4 bilhões em automóveis importados, esfrangalhando as contas externas. Ao mesmo tempo, as montadoras passaram a jogar pesado, anunciando a transferência de todos seus investimentos para a Argentina.
Cria-se clima de pânico, que leva as autoridades a sucumbirem às pressões das montadoras. Aprovou-se o acordo automotivo que, na prática, atropelava a lógica da cadeia produtiva.
Numa ponta, reduziu-se a 2% a alíquota de importação de autopeças; na outra, aumentou-se para 70% a alíquota de importação de automóveis.
Fim do minueto
A partir daí a indústria automobilística passou a viver a fase mais resplandecente da história. Os lucros cresceram de maneira vertiginosa. Foram anunciados novos investimentos -o que é ótimo-, mas em cima de reinvestimentos de lucros obtidos no mercado interno -o que significa menos dinheiro novo.
Os lucros acabaram saindo dos consumidores (que, sem a concorrência externa, passaram a pagar mais pelos carros) e dos fornecedores (que, sem as alíquotas de importação, tiveram que reduzir mais seus preços).
Junte-se esse quadro às circunstâncias específicas do mercado de autopeças brasileiro, formado especificamente para substituição de importações, tendo pouca presença no mercado interno, e pertencendo, em grande parte, a empresas familiares, com pouca abertura para fusões ou incorporações.
Essa mistura é a responsável por esse arraso. A cada semana, mais empresas fechando, mais trabalhadores sendo demitidos, mais São Paulo se esvaziando economicamente.
O resultado final desse jogo talvez não seja a desmontagem do tecido industrial -como prevêem alguns economistas. O mais provável é que o setor se reestruture em outras bases, com novos grupos estrangeiros entrando e assumindo o comando.
Mas a dose de sacrifício inútil, de desemprego, de esvaziamento econômico de um Estado pujante, de perda de tecnologia, é a demonstração cabal de quanto falta ao Brasil -e, especialmente, ao governo- de conhecimento em áreas-chave para o desenvolvimento.

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