São Paulo, domingo, 8 de dezembro de 1996
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A certeza da influência

DA REDAÇÃO

Continuação da pág. 5-8

Claro, preciso informar que o Zé Lino considera brega e aventureira qualquer pessoa que pinte no Rio em busca de praia ou emprego público ou notoriedade -ou tudo isso junto: maranhenses, baianos, americanos, paulistas, mineiros, paranaenses, gaúchos, gente da zona norte (Saenz Peña). Abria algumas exceções: Fritz Lang, Ênio Silveira e -principalmente- Chaplin (que tem por superior a Eisenstein), Bergman (guru-mor dos seus anos de tenista do Fluminense) e Godard (graças a quem sorri do alto para Julio Bressane), se por ali chegassem.
Nunca me teve em altíssima conta, mas condescendeu em aceitar-me, quando soube que, em 1944, no Amarelinho, eu adolescente, enquanto um crepúsculo parisiense caía sobre a avenida Rio Branco, tomava um solitário chope encantado, porque atrás de mim, em animada mesa, estavam Almirante, Lamartine Babo e Zezé Fonseca. O Zé Lino jamais vai à praia, ponto de honra. Tal como o fazia Nelson Rodrigues, tal como fazia Mário Reis, seus amigos. Em resumo, disse o Zé Lino: "Olhe, Décio, enquanto não acabar esse flaflu entre Rio e São Paulo, a cultura brasileira não prospera".
Folha - Quais as críticas mais pertinentes feitas ao movimento concretista e ao sr. em particular? O sr. reveria alguma posição sustentada taticamente pelo movimento? O sr. não teme que ocorra com o concretismo o mesmo que aconteceu com outras vanguardas, ou seja, tornar-se apenas um marco histórico e ter sua produção poética apenas por isso avaliada?
Décio - As críticas sempre foram impertinentes: alienada, formalista, elitista. Mas os ectoplasmas desses nosferáticos vagabundos do carreirismo tupiniquim desfaziam-se no ar à luz do nascer do sol, ante o corpo da virgem impoluta chamada poesia concreta.
Nada posso fazer para impedir esse lastimável congelamento histórico da fervente e fervorosa revolução que foi e é a poesia concreta. Consola-me saber que, em 2006, talvez possa haver mais uma comemoração. Uma coisa é certa: grandes eventos estão sendo preparados para a comemoração dos cem anos de "Um Lance de Dados", de Mallarmé, no ano próximo. Não é extraordinário que se festeje o centenário de UM poema?
Haroldo - Com raras e notáveis exceções (as críticas de Mário Faustino e Mário Pedrosa, por exemplo; a recepção sensível de Manuel Bandeira), a poesia concreta, em sua "fase heróica" (e mesmo ainda hoje), tem sido enfocada por críticos conservadores, esteticamente reacionários (Wilson Martins e Merquior são exemplos típicos), que a abordaram de maneira preconceituosa e destituída de interesse heurístico.
Mesmo uma pessoa de boa vontade, como Antonio Houaiss, num primeiro momento, deixou-se assaltar de espanto apocalíptico diante do movimento que eclodia. Em seu estudo "Sobre Poesia Concreta", apresentado primeiro como um elenco de dúvidas e objeções, quando da conferência de Décio Pignatari na sede da UNE (Rio de Janeiro, 1957), deixa-se levar por um equívoco de audição.
Pretende que Pignatari teria postulado que a poesia concreta visava a "provocar um enxame de significações cerebrais". O que Pignatari disse, e Houaiss ouviu mal, foi: a poesia concreta não pretende provocar "enxames de sentimentos inarticulados" ("swarms of inarticulate feelings"), expressão de Eliot, usada por Hugh Kenner para distinguir entre a poesia do próprio Eliot (mais palatável para um leitor à busca do onírico e do emotivo) e a de Pound, não "inspirada", que "pediria, antes, atos complexos de discernimento" do que a "imolação" sentimental do leitor ("The Poetry of E.P.", 1951, págs. 18-20).
Os poetas concretos teorizaram a sua prática e com ela aprenderam. À falta de críticos aptos a compreendê-los, tiveram de produzir a metalinguagem necessária ao seu entendimento. Por outro lado, um manifesto é um elenco de pressupostos que a prática ora ratifica, ora retifica, não uma tábua de dogmas... Assim, para nós, no tempo, o "plano-piloto" (síntese do que pensamos e escrevemos a respeito do futuro da poesia de 1950 àquela data -veja-se a "Teoria da Poesia Concreta", 1965) foi-se desdobrando na prática e sendo por ela criticado, num movimento dialético, que nos levou, a cada um de nós, com as diferenças respectivas, às etapas posteriores de nosso trabalho poético, até o dia de hoje. Aprendemos de nós mesmos, não da miséria da crítica...
Mas olhe: o caso da poesia concreta não é o único em nossa literatura contemporânea. A recepção inicial de Guimarães Rosa (cuja obra-ápice, o "Grande Sertão", publica-se no mesmo ano em que foi lançada em São Paulo a poesia concreta, 1956) foi controversa.
Conforme pesquisa efetuada em recente estudo -excelente pelo levantamento feito e por sua respectiva avaliação crítica-, no período de 1956 e 1958-60, se o livro de Rosa foi elogiado por críticos e escritores, como Antonio Callado, Paulo Rónai, Afrânio Coutinho, Cavalcanti Proença, Oswaldino Marques, Tristão de Ataíde, Pedro Xisto Euryalo Canabrava e Antonio Candido, foi também "duramente criticado por Marques Rebelo, Adonias Filho, Ferreira Gullar, Ascendino Leite, Wilson Martins, Nelson Werneck Sodré e Silveira Bueno" (Ana Luiza Martins Costa, "Rosa, Ledor de Homero", Rio, novembro de 1996; texto resumidamente apresentado no congresso da Abralic, em agosto deste ano).
Mas, para escarmento, bastaria lembrar o truculento ataque de Sílvio Romero (para muitos, nosso mais importante crítico e historiador literário do passado) a Machado de Assis, em 1897, no auge da glória do autor de "Memórias Póstumas de Brás Cubas" (1881) e "Quincas Borba" (1891) -obras, aliás, que o crítico sergipano considerava inumanas, carentes de comunicabilidade e de inteligibilidade, produtos não da maturada mestria de um estilo único, mas efeitos fisiológicos da "gagueira", da "perturbação nos órgãos da palavra", que afetaria seu autor... Em suma, "verdadeiros abortos de uma imaginação sem real força criadora", segundo o obtuso juízo romeriano.
Augusto - Existe, nas áreas mais conservadoras, uma certa tendência para procurar desmoralizar as vanguardas, caracterizá-las como surtos transitórios de renovação e arquivá-las o mais rapidamente possível numa gaveta, com uma rubrica, o que não passa de uma estratégia defensiva para exorcizar a sua presença incômoda e crítica.
Mas as vanguardas, além de sua incidência histórica, nos deram Maiakóvski, Khliebnikov, Apollinaire, Huidobro, Pound, Gertrude Stein, Pessoa, Sá-Carneiro, Schwitters, Cummings, Oswald e Mário de Andrade etc. etc., para só falar de poesia. Não há melhor companhia do que essa. O que há para temer? Com a poesia concreta não há de ser diferente. Se a nossa produção poética tiver valor, será avaliada, coletiva e individualmente, como a de todos os poetas que abriram caminhos imprevistos para a poesia, participando dos movimentos artísticos de renovação do seu tempo. Se não, não.
Folha - O sr. ainda se considera, em algum aspecto, concretista?
Décio - Somatizei a poesia concreta. Às vezes, livro-me dela.
Haroldo - Não faço poesia concreta, no sentido estrito da expressão, que designa o movimento concretista dos anos 50, há mais de 30 anos.
Em 63, principiei a escrever minhas "barroquizantes" "Galáxias". Houve um câmbio de horizonte cultural, uma crise ideológico-cultural, a partir de meados dos anos 60, que, a meu ver, não mais tornou praticável "programar o futuro", demandando uma poesia do presente, da "agoridade": o que eu chamo "poesia pós-utópica".
Sobre o assunto, escrevi nesta Folha dois longos ensaios: "Poesia e Modernidade 1 - Da Morte da Arte à Constelação"; "Poesia e Modernidade 2 - O Poema Pós-utópico" ("Folhetim", 7 e 14/10/1984), em diálogo com o livro de Octavio Paz "Los Hijos del Limo". Tratava-se de uma comunicação apresentada antes no México, num simpósio em homenagem aos 70 anos de Paz, promovido pelo Instituto Nacional de Bellas Letras. Remeto o leitor interessado em acompanhar minha argumentação a esse trabalho.
Em síntese, diria que guardei, da poesia concreta stricto sensu, na fase em que me encontro, pós-utópica, desde "A Educação dos Cinco Sentidos" (1985), o rigor, o resíduo crítico da utopia e a vocação para a concreção em sentido generalizado, pelo trabalho sobre a materialidade, o lado "palpável" dos signos, tão bem estudado na poética de Roman Jakobson.
Nesse sentido geral -e a minha longa prática de tradutor criativo de poesia de variadas línguas e literaturas me autoriza a dizê-lo com conhecimento de causa-, só é poeta, em qualquer época e no âmbito de qualquer escola, aquele que se volta para a materialidade sígnica, a "forma significante", na elaboração de seu poema. Na poesia, não revela -por exemplo- a dor real, a dor que o poeta "deveras sente". Importa sim a "dor ficta", a "dor fingida", vale dizer, formalmente configurada nas palavras do poema. É o que soube ver, melhor do que ninguém, Fernando Pessoa, que também escreveu: "Tudo o que em mim sente está pensando".
Augusto - Não costumo utilizar a expressão "concretista" (que me lembra seita ou partido). Nos tempos heróicos preferia "concreto", que me parecia neutralizar um pouco o inevitável "ismo" que se cola aos movimentos. A minha poesia tem um antes e um depois. Mas de qualquer forma a experiência da "poesia concreta" me marcou profundamente. Não só ela, mas tudo o que decorreu dela, inclusive o estudo e a tradução de muitas poéticas e poetas, dos trovadores provençais aos russos modernos.
Feliz ou infelizmente, a minha poesia de hoje (embora muito diferente da que eu fazia nos anos 50) tem tudo a ver com a poesia concreta. Há cinco anos só trabalho com computadores. Como observou o pintor Waldemar Cordeiro, na arte concreta encontram-se os pressupostos formais da arte digital. A iconicidade e a mobilidade da projeção de imagens na tela são muito mais compatíveis com o mosaico espacial dos textos concretos do que com o ingurgitamento visual dos textos discursivos.
Nesse ambiente, e com os amplos recursos da editoração eletrônica, encontro o contexto ideal para desenvolver, agora com cores, movimento, imagens e palavras combinados e ainda sonorizados, o projeto de uma poesia "verbivocovisual", que imaginávamos há 40 anos atrás, e que Mallarmé previra há um século. Assim, muito embora eu nem saiba como classificar muitas das, digamos, "pesquisas poéticas" que estou fazendo, elas não existiriam sem a experiência precedente da poesia concreta, que é, eu acredito, um dos formantes básicos da linguagem poética de agora.
Folha - Na sua opinião, quais os principais dilemas da poesia brasileira atual?
Décio - Nenhum dilema especial. A poesia brasileira é bastante livre e bastante fiel à tradição milenar da poesia: ela não dá dinheiro.
A prosa dá dinheiro -e é uma droga. A prosa ficcional brasileira está entre as mais frouxas e descaracterizadas do chamado mundo civilizado. O universo acadêmico é um dos grandes responsáveis por esta situação.
Um exemplo: o meu primeiro orientador, o mais que honesto Antonio Candido, nos anos 70, conseguiu dar um curso inteiro, de dois semestres, sobre o romance "Senhora", de José de Alencar.
E um lembrete: somente nos fins dos anos 60, os departamentos de letras das universidades públicas admitiram nos seus currículos o estudo da chamada literatura moderna brasileira! Em 1968, havia gente obrigada a estudar Guerra Junqueiro (pobres letras portuguesas)! Exatas, biomédicas e econômicas: os únicos setores aceitavelmente sérios da universidade.
Augusto -O principal (e não é apenas um problema brasileiro) é a dessensibilização coletiva para com a poesia (e não só a poesia, também a música-pensamento, a "música contemporânea" em especial, pois é deplorável reduzir a experiência da grande aventura musical do nosso tempo apenas às obras de entretenimento).
Lamentavelmente, de Camões a Cummings, lê-se muito pouco poesia. Esta só é assimilada mais amplamente no âmbito da música popular, onde por vezes atinge notável sofisticação, mas onde também se restringe, quase sempre, a padrões convencionais, manietada pelos parâmetros comunicativos do gênero.
Esse massacre da poesia, hoje reduzida a uma espécie de "reserva indígena" da sensibilidade, dá aos poetas uma enorme força ética, enquanto personagens marginalizados da resistência ao consumismo e às convenções, mas ao mesmo tempo os coloca numa situação de desvalia e de indignidade talvez sem precedentes na história da cultura humana.
Ao poeta compete, pois, enfrentar o desafio de não desintegrar a sua consciência crítica diante das pressões do consumo e do conservadorismo literário (que, entre nós, se expressam, mais do que tudo, pela tentativa de colocar entre parênteses a renovação da linguagem do alto modernismo e das vanguardas). E responder criativamente, como "antenas" sensíveis, ao desafio dos novos processos de articulação de textos e imagens expandidas pela tecnologia e desperdiçadas pela mídia em confeitos descartáveis.
A revolução da informática repontecializa as propostas das vanguardas, viabilizando os procedimentos da modernidade -a colagem, a montagem, a interpenetração do verbal e do não-verbal, do gráfico e do sonoro- e proporcionando maior autonomia da produção e da difusão da arte. Os poetas são trovadores, inventores, por definição. Nesse quadro e nesta quadra, o que lhes cabe? Experimentar, experimentar, experimentar, com a liberdade e a independência que só eles têm, rompendo limites, de preferência nas interseções disciplinares da palavra com as artes visuais e o som. Fustigar a preguiça da sensibilidade e da imaginação.
É o que importa. Como disse o compositor Luigi Nono, ao propor, em suas últimas obras, as mais radicais, uma "nostálgica utópica futura" regeneração da escuta: "Ouvir as pedras".
Folha - Quais os três poemas do período propriamente concretista que o sr. considera mais significativos, incluindo os seus? Caso não lhe tenha ocorrido citar, que poema deste mesmo período o sr. destacaria de Décio Pignatari, Haroldo e Augusto de Campos e Ferreira Gullar?
Décio - Alguns poemas dos tempos da chamada poesia concreta ortodoxa (a que estabeleceu o cânone): "tensão" (Augusto de Campos), "nascemorre" (Haroldo de Campos), "rua/sol" (Ronaldo Azeredo), "vai-e-vem" (José Lino Grunewald), "coca cola", "Life", "organismo" (Décio Pignatari). São poemas que tiveram repercussão nacional e/ou internacional.

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